RESTO: GOSTO DE AMARGO


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PARTE IV
Resto: gosto de amargo



Eu abri a boca.
Eu a abri para dizer.
Mas o ar que escapou
foi para esgotar o meu fôlego.

Estou desacostumado a respirar,
coisa de quem cala a própria boca.

Sou um falso cheio.
Meu amor é da pior categoria.


+++

queria uma surra
machucados de verdade

soco na cara
chute na barriga
apanhar no chão

apanhar mais
olhos turvos
gosto de sangue
rastejar pelo apartamento

sangue no cabelo
sangue na roupa
um osso quebrado no braço

e você, inteiro
sangue, só nos olhos,
e uma dúvida:
"bato mais?"

é isso que eu quero.


+++

Estranho é mesmo,
mas eu fui me tornando
tão pequenininho,
tão miudinho,
que não consigo mais
me encolher.
Não sinto frio.
Não sinto mais vergonha.
Sinto que lhe devo por
essa dádiva.


+++

desde então
estou pendurado
no varal

torço para que o sol
me seque

mas acho que
o cachorro do vizinho
vai me rasgar
antes disso


+++

o coração faz
“baticum”,
disse a poetisa.

o meu só soluça
e dá gritos...
me exorcisa?


+++

a língua me guia.
lambo bocas
lambo mamilos
lambo os dedos
lambo o cu.
lambo outras línguas
pois confio no meu paladar.
foram minhas adoradas
papilas gustativas
que ensinaram ao meu
coração
uma palavra que
na minha língua
não tem lugar: bittersweet
quer dizer: ele.


+++

a coisa mais feia
do mundo
(do meu mundo)
é abandonar alguém.

por isso você
me dói:
brinca comigo de espelho.


+++

Troco meus amores
por um sofá novo.
Estou remodelando a casa -
vejam só -
e preciso de um lugar para
deitar sozinho.

Troco meus amores
até por um tapete.


+++

Ele é tão bobinho,
meu Deus,
que se apaixonou pelo homem pintado no quadro.

Eu já amadureci:
só gosto dos homens das esculturas.
Nem ligo se são feitos de pedra.


+++

os pares de meia enroladinhos
a mania de guardar papeizinhos
sabia me convencer com beicinho
gostava de comer canudinho

era meloso para mandar recadinhos
e fazia inveja aos vizinhos
é mistério você tão engraçadinho
ter um cerne maldoso e mesquinho


+++

Disseram-lhe?
Pois bem:
meu novo rapaz
cuida de mim
como que de um neném.


+++

chorei tanto
que meus joelhos
enferrujaram.

agora estou velho
e calculo o número
de passos.

quando você me deixou
chorei na mesa da cozinha
e nunca mais fui jantar fora.

meu choro não
é chuva.

é poça.


+++

Insisto.
Mas estou só.


+++

"Se eu te furar
vai ter sangue".
E eu deixei,
pois lhe daria de beber do meu sangue violeta.
Desgraça: a estaca que me abriu não achou flor nem cor.
Buraco que não fecha
é buraco ordinário:
vaza bile e amargura.


+++





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