COROA




COROA


            
No movimento em que estão, dificilmente identifica-se quem é um e quem é outro; estão embaralhadas as pernas, os torsos, as bocas. Os gemidos são graves, arfadas arranham as gargantas, o choque entre os corpos aumenta o prazer. O inverno é gélido lá fora; aqui dentro, menos; o calor e a umidade do suor emanam uma aura de vapor ao redor dos amantes. Em idas e voltas, entradas e saídas, vão ficando mais lentos, os últimos gemidos saem junto com o gozo. Os dois largam os corpos, olhos fixos na cobertura do dossel, azul-marinho, e inspiram no ar o resto do sexo do outro.
            
Agora sim, sabe-se quem é quem: o forte, músculos inchados, pênis grande, cabelo preto e bem tratado, pêlos no peito, este é o Rei. O outro, o menino, olhos azuis, pele branca, ossos finos, dente da frente lascado, este é o servo.
            
“Vossa Majestade desejais que eu traga água?”

“Sim...”
            
O menino levanta-se e traz a água para o Rei.
            
“Quantos anos tens?”
            
“Eu completaria dezessete anos em março, Vossa Majestade.”
            
“Completarias... Então sabes o que acontecerá agora, não?”
            
“Sim, Vossa Majestade ireis me matar.”
            
O Rei gargalha. O menino também ri. Depois do sexo bom é tão fácil, para qualquer um.
"Eu não mato ninguém, menino! Eu ordeno a execução!” 

“Meu nome é Peter.” 

A autoapresentação do menino pega o Rei desprevenido. Desconfiado, como um bom rei deve ser, nada diz. Sai da cama, espreguiça-se, deita-se no chão e alonga o corpo.
            
“Eu adorei vosso corpo, Majestade.”
            
O Rei ri novamente.
            
“Gostas de falar, não é, menino?” 

“Se Vossa Majestade tivésseis mandado me matar um minuto atrás, eu não teria visto como é bonito o vosso corpo se levantando, vosso membro relaxado, vossa beleza esticada no chão.” 

O Rei olha-o com austeridade.
            
“Tens alguma esperança que eu não te mate? É por essa razão que dizes seja lá o que estás dizendo?”
            
“O que eu teria que dizer, ou fazer, para que Vossa Majestade não me matásseis?”
            
Antes de o Rei responder, Peter propõe:
            
“Eu posso ser vosso para sempre, ficar trancado aqui, vosso servo particular, só para o vosso deleite!”
            
“Peter. Peter. Jovem Peter... hoje é o último dia que viverás. Não há discussão sobre isso. Não importa o quão belo sejas, o quanto tua família precise de ti, ou o quanto tu gostarias de viver nas montanhas, ou quão honrado ficarias em pelejar na guerra... ou estar em minha cama. Teu destino está selado, por escolha minha. Não fiques chateado, Peter, pois estarás sendo descortês com o homem que te tratou tão gentilmente esta noite. O homem que te deu de sua própria comida, que colocou o próprio corpo para o prazer do teu, que te deixou provar-lhe de todas as maneiras que desejou. E este homem tão benevolente é o Rei! O teu Rei! O Rei de tudo o que conheces!”
            
“Perdão, Vossa Majestade...”
            
“Quem te orientou a chamar-me de Vossa Majestade?”
            
“Todos vos chamam assim? Está errado?”
            
O Rei não quer ir adiante.
            
“Peter. Eu pedirei que venham buscar-te agora. Há algum último desejo que habita em teu coração?”
            
“Um pedido?”
            
“Sim.”
            
“Só um?”
            
“Apenas um.”
            
Peter olha ao redor.
            
“Eu quero vestir aquele vosso manto azul... e a coroa de rei também!”
            
“Isso não é possível. São objetos consagrados.”
            
“Por favor...”
         
“Não!” 

O Rei grita, impaciente. Peter ajoelha-se. 

“Perdão, Majestade, Vossa Majestade, perdão.”
            
“Faça teu pedido, ou mandarei te buscarem!”
            
Peter fica de pé, um pouco trêmulo, respeito.
            
“Gostaria de ver Vossa Majestade com o manto azul e a coroa...”
            
E antes que o Rei manifeste qualquer ação, Peter traz o manto. O Rei deixa que ele coloque-o em suas costas. A coroa vem também pelas mãos de Peter, mas o próprio Rei leva-a à cabeça.
            
“O Rei não está mais nu!”
            
“O quê?”
            
“Estou brincando com a história, aquela em que o Rei sai nu pelas ruas!”
            
O Rei olha para si mesmo, de manto e coroa, e nu. Quando volta o olhar para Peter, é marcado, sabe no exato instante, pela emoção do menino.
            
“Vossa Majestade Real e Imperial sois tão divino, tão magnífico, tão soberano! Desejo que não morrais nunca!”
            
As palavras de Peter são as mais sinceras de todo o tempo de reinado.

O Rei tira de si seus adereços. Em alguns poucos gestos, firmes, reais, precisos, adorna Peter de manto e coroa. Caem-lhe bem o poder e o azul, avalia o Rei: combinam com seus olhos. Alguns instantes depois, toma-os.
            
“Deus te abençoe, Peter. Está na hora de ires.”
            
O Rei chama pelos guardas.
            
“Morrer? Irei mesmo morrer?”
            
“Sim. Irás. Se valer de alguma coisa, considerei, com meu coração limpo, manter-te vivo. No entanto, morrerás ainda hoje. E eu, com certeza, estarei arrependido amanhã.”
            
Antes que os guardas o levem, Peter pede uma palavra mais.
            
“Que pedido mais estúpido, o meu! Eu queria mesmo era ter tido mais uma noite com Vossa Majestade, a Grande Majestade, a me servir, na cama! E depois mais outra, e mais outra, e mais outra... Se assim eu tivesse feito, Vossa Majestade teríeis acolhido meu desejo? ”
            
“Certamente que sim.”
            
Peter morre. O Rei se arrepende.








----------


----------


Se você curtiu esse texto, pode ser que você também curta:

A MORTE DE CADA HOMEM




Confira os outros MARCADORES abaixo!
COMPARTILHE os textos do HSE nas REDES SOCIAIS clicando nos botões de compartilhamento!



----------

Nenhum comentário:

Postar um comentário