MÚSICA

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MÚSICA


A coleção de discos de vinil de Milo ultrapassava os dois mil volumes e ocupava um cômodo inteiro de seu apartamento. Havia um pouco de glória em possuir tantos e Milo gabava-se, sim, ao receber o reconhecimento por seu empenho. Ao ser elogiado, ou ele ou seus discos, retribuía contando histórias sobre como conseguira exemplares raros, ou casos engraçados, ou ainda informações desconhecidas a respeito de álbuns e artistas.

Separados dos outros, guardados em seu quarto, próximos à vitrola antiga, havia uma seleta amostragem de 24 discos, feitos tão especiais por carregarem em si as 24 músicas certas. Para alcançar tal status, ao contrário do que se possa imaginar, uma música não precisava ser popular, ou ter uma agradável melodia, ou complexidade em sua composição, quanto menos uma letra poética. O necessário para que uma música salvasse um disco de estar em seu ordinário lugar alfabético no quarto ao lado: uma cena.

Em cada um desses discos, no canto superior direito da contracapa, vinha colada uma etiqueta com o nome de um homem; vários nomes, vários homens. Esta indicava quem seria o merecedor de ouvir alguma das canções ali contidas. No canto inferior direito, uma outra etiqueta, anotada em termos como:

“em sua despedida para o intercâmbio”;
“depois de uma briga (em que eu tivesse a razão)”;
“em um karaokê (com amigos em comum presentes)”;
“para pedir desculpas”;
“na festa do trabalho (dele)”;
“para cantarmos juntos (um para o outro)”;
“em uma performance (vestido a caráter)”;
“na véspera de seu casamento”;
“para seduzi-lo”;
“depois de muito tempo longe (ele canta pra mim)”;
“em seu funeral ou em uma reunião em sua memória”;
“em seu funeral ou em uma reunião em sua memória (com choro)”;
“na cama (no dia seguinte)”;
“vingança (com a presença de sua família)”;
“para aceitar uma proposta”;
“em um show dele mesmo (como surpresa)”;
“como um pedido de socorro (fingindo que não sabe que ele está ali)”;
“na webcam”;
“para convencê-lo a vir comigo”; e ainda outras, algumas outras. Se eram assim sucintas em seus adesivos, Milo tratou de esmiuçar cada uma dessa situações em pequenos textos, que recompunham em muitas palavras a conjuntura imaginada para ser o palco para sua declaração musical emprestada de outrem. Não escreveu tanto à toa. Tinha um plano.

Dentro dos 24 envelopes de cartão duro dos Correios, feitos especialmente para o envio de LP’s, Milo enfiou cada um dos discos de vinil e um bilhete, explicando que deveria ser lido primeiramente o texto (no qual estava descrita a cena que outrora só havia em sua imaginação) e, só então, a música deveria ser tocada. No final de sua mensagem, repetiu, nas 24 cartas: “É assim que nós dois estamos juntos...”.

Finalmente postados os pacotes, resta-lhe esperar. Há uma esperança em ser surpreendido, pelo menos por um deles. O outro (qualquer outro) receberá, intrigado, o pacote, será apresentado a uma circunstância vinda do desejo de Milo, e será capaz de ouvi-lo (e evocá-lo) no sutil chiado da gravação. O tal chegará sem aviso e lhe cantará uma canção desconhecida, mas que se case com velhos anseios que ainda não se sossegaram dentro do peito de um apaixonado.





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