A MORTE DE CADA HOMEM

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A MORTE DE CADA HOMEM 


Os homens que crio já existem. 
Já nasceram os faróis que invadem minha fantasia. 
Os olhos que me espiam os segredos são mais astutos do que eu. 
A devassa irrefreável do meu imaginário diz: você não inventa, você não descobre, você é escravo! 
Sou escravo... sou escravo... sou escravo. Repito: sou escravo... 
Os homens que prendo com minhas histórias não são meus, não eram meus. Eu os roubei de outros, de si mesmos.
De mim. 
Os homens que crio têm vida e reagem quando acuados. 
Têm fome, e comem. 
Fazem força, e vencem. 
Cantam, em meus sonhos, e eu sou novamente escravo. 
As histórias que escrevo empurram homens contra homens, em encontros que também já se deram. Eu sempre chego atrasado. 
Caio e morro diante dos homens que me fizeram acreditar que era verdade. 


Cena [The fall, o filme] 

Ao lado do leito da pequena Alexandria, que sara da queda que lhe abriu a cabeça, Roy Walker, mentiroso, continua a covarde história que havia começado (e que história não é covarde?). Narra para a menina, enferma, o destino de toda criatura. Mata, um a um, seus possíveis heróis, já que havia fracassado na fácil tarefa de matar a si mesmo. Alexandria, menina, não entende, pois precisa acreditar que a morte não é feita para as histórias, mas para a vida, para o pai, para o que tem que ser. A enferma, que chora, protesta. 


Alexandria: Why are you killing everybody? Why are you making everybody die? 
Roy Walker: It's my story. 
Alexandria: Mine, too. 


Os homens que crio têm vida, mas foram criados para ter fim.
Nas páginas que coleciono, engendro a morte sem piedade, castigo a inocência dos inadvertidos. A morte assombra os homens que crio. 
Os homens que crio são meus e os mato, porque matar a mim mesmo me envergonha. 
Agrido, estupro, atiro, azaro, parto, corto, perfuro, assassino, palavro. 
Empurro. 
Eu queria mesmo era dizer: Obrigado, Cael! Obrigado, Dom! 
Queria ter a opção de deixá-los vivos... 
Mas eu desaprendi a ser grato aos que não são meus devotos. 
Os homens que eu crio correm para longe de mim, para fugir da morte. 
Por vezes, a compaixão me faz tremer os dedos. Vacilo quanto ao que me é dado dizer. A respiração não se comporta... mas logo se comporta. Então corro por entre letras, desvio-me pra lá e pra cá, passo entre linhas, acerto o passo, preparo a armadilha, rio antes do crime (porque sei que depois não terei vontade), e apresento aos meus homens, pela primeira vez, mais uma vez, a morte. 


mim mesmo: Por que você está matando todo mundo? Por que você está fazendo todos morrerem? 
mim mesmo: A história é minha. 
mim mesmo: Minha também.

Eu digo: Obrigado, Ulisses! 
Que lamentável essa perseguição de mim mesmo! 
Eu disse lamentável !? 
Disse mesmo a palavra lamentável !? 
– não era minha intenção – 
– que lapso – 
– quase uma anedota – 
Deveria ter dito louvável... 
Que louvável os que sobrevivem a si mesmos! 
Matar é melhor que morrer. 

(Mentira! Eu os queria vivos! I’m sorry!)





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Um comentário:

  1. Eu curto esse tom mais épico de alguns dos seus textos! Esse tem uma força impressionante! =)

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