ESPADA

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ESPADA


A primeira coisa que se vê, ao entrar no lugar que o velho Uzkan chama de lar, é a sua espada. Ele a toma nas mãos diariamente, mas há décadas já não fere ninguém com sua lâmina. É, a arma, seu bem mais valioso, ele diz a quem o visita.

Para chegar até o lar de Uzkan, deve-se caminhar uma légua a partir do arraial de Milfintert, pela praia, sentido norte. Em meio às falésias de At, há uma fenda, que serve como porta de entrada. Só é possível chegar ao lar de Uzkan com segurança nas horas de maré baixa. Poucos vão até lá. Ninguém o visita.

O lar de Uzkan é uma caverna. Iluminada a fogo. Há cama e papéis. Pende do distante teto, à altura de um guerreiro, suspensa por um fio de metal, a espada. Deve-se levantar os braços para alcançar o gancho no qual fica pendurada pelo rebite.

A espada assemelha-se a um gládio romano, porém é um pouco mais longa; do pomo a ponta, tem a mesma medida do pulso ao centro do peito de Uzkan, um pouco menos da metade de sua envergadura. A lâmina é larga, de dois gumes, com o fio em forma de diamante, sem sulcos. Só há afilamento na extrema ponta. No encaixe, uma pequena peça semiesférica, de ouro, ocupa o lugar de guarda-mão. Uzkan tem a mão grande. O cabo é cilíndrico, com adornos em marfim e em ouro branco.

No entanto, é sob o punho, no pomo esférico, também de ouro branco, que está o amor de Uzkan. Em caligrafia fina e expressiva, lê-se, rasgando o nobre metal, um nome: Derkan.

Derkan é seu irmão, meio-irmão, pelo sangue da mãe. Lutaram juntos em Tirshem, e em Kelnabar, na batalha de Seoor. Derkan salvou sua vida quando emboscados por Doleman e seus ladrões. Uzkan retribui o favor na invasão de Cabi.

Uzkan e Derkan nasceram em Milfintert, onde a velhíssima mãe ainda vive. Ao final da Guerra da Península, há 42 anos atrás, separaram-se. Derkan casou-se com Tanhu, indo viver ao sul da ilha de Dinte, onde pescam para sobreviver. Uzkan ficou por perto, nos arredores conhecidos de Milfintert, solitário.

Lê silenciosamente, mas movendo os lábios, o nome do irmão no pomo de sua espada. A espada de Derkan, muito parecida com a sua, tem inscrição semelhante, se ainda existir. Perdeu-se a espada. Uzkan: dizia.

Desde a mocidade, todas as espadas que tiveram, perdidas em confrontos ou trocadas por comida, logo que prontas, recebiam os nomes: Uzkan e Derkan. Cada um levava o outro consigo, na espada, para que fossem retidas a coragem, a prudência e a honra.

Hoje já se contam mais anos de separação do que de convivência. Veem-se anualmente, nas primaveras, quando Derkan volta a Milfintert para a Festa de Ilf. Uzkan já esteve em Dinte duas vezes.

Belo é ver Uzkan com sua espada. Toma-a, diariamente, pela manhã, sai à praia, e treina velhos golpes em inimigos imaginários, como havia lhe ensinado um antigo mestre. Quando está inspirado, cria novos movimentos; volta à caverna e os desenha, detalhe a detalhe, em caras folhas de papel, avulsas. Com o cessar dos muitos conflitos no arquipélago de Anurt-Ab, teve tempo para desenvolver técnicas de lançamento de espada. Caça e pesca com ela.

Já está velho, Uzkan, mas sua espada não se acaba. Está sempre nova. Está nova há 42 anos, mas não há mistérios nem comentários sobre esta incomum durabilidade. Haveria, se a vissem, mas só ele põe os olhos sobre ela. Nem mesmo Derkan. Derkan não sabe que a tal espada ainda existe, que habita o lar de Uzkan.

Uzkan tem orgulho de ser um guerreiro, gaba-se de guardar o nome do irmão, meio-irmão, e promete a si mesmo que sua espada, seu amor retinto, dançará pelos ares até que a morte o convide para o derradeiro duelo, no qual será derrotado dignamente.









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