PREFÁCIO

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PREFÁCIO 


Muitos professores, críticos e artistas recebem o convite para prefaciar um livro com muito entusiasmo. Consideram-no uma honra. No entanto, em tantos anos de vivência no ramo editorial, aprendi que essa é uma missão perigosíssima e, na grande maioria das vezes, ingrata.

Quando o Ulisses me ligou para me fazer justamente esse convite, de prefaciar esse Homo Sapiens*, não foi direto ao assunto. Ele conversou sobre amenidades primeiro, ficou esperando a hora certa de me fazer a proposta. As chances de eu negar a tarefa eram altíssimas. Ulisses sabia, claro! Por isso, deu seus pulos para me colocar na situação em que me encontro. Aceitei. Ele fez um apelo à nossa amizade. E à minha vaidade, vale acrescentar.

Uma hora depois de eu ter aceitado, liguei para ele na esperança de negociar algumas condições. É claro que eu deveria tê-lo feito anteriormente, mas não custava tentar. Ele aceitou meus termos antes mesmo de ouvi-los. Foi somente depois dessa segunda ligação que eu me senti lisonjeado, como se sentem, em geral, os convidados. Porque quando desliguei o telefone após a primeira ligação, depois de já ter aceitado o convite, fiquei muito desconfiado de suas intenções. De tanto ruminar as conversas daquela noite, acabei entendendo o porquê da escolha de meu amigo, e se por um lado tenho a convicção de que sou uma pessoa contra-indicada para apresentar esse livro, por outro tenho certeza de que nenhuma outra poderia acrescentar ao leitor tantas informações e impressões como eu.

Para tanto, devo voltar um pouco no tempo para tentar recompor brevemente a história que envolve esses contos, esse autor e esse prefaciador, pois entendo que saber sobre esse processo talvez seja mais interessante do que qualquer análise ética ou estética.

Conheço o Ulisses desde a infância, mas nos tornamos amigos na nossa adolescência. Nossas idas e vindas ao Granbery, nosso querido colégio, nos renderam muitas horas de conversas; a maior parte delas eram trivialidades, mas nos ajudaram a ganhar confiança um no outro. Tenho ainda a imagem vívida na memória da primeira vez que o Ulisses me mostrou um conto que havia escrito, que consta neste livro com o título de “Beijo”. Estávamos na minha casa, estudando para uma prova de Matemática, quando ele sacou um texto da mochila para me mostrar. Não disse que era dele, disse apenas que queria ouvir minha opinião. Eu li e disse-lhe que havia gostado. Só então ele me contou que era de sua autoria. Eu respondi que já sabia. Na semana seguinte, Ulisses levou vários outros contos para me mostrar, e eu me lembro de ter pensado que ele era a pessoa mais inteligente que eu conhecia e que sabia escrever muito bem. Nessa época, eu não pensava em ser editor, muito menos em trabalhar com literatura.

Alguns anos mais tarde, quando estávamos na Universidade, tive um novo contato com alguns desses contos e ainda outros. Devo ressaltar que, nessa época, eu já tinha um gosto literário mais apurado. Li e reli os contos, a pedido dele. Marcamos de almoçar e eu falei pra ele que não gostava de quase nada. Ele não aceitou bem a crítica. Eu expliquei que não gostava do tema, nem dos personagens, nem da falta de estilo dos textos.

Em maio de 2006, Ulisses lançou seu primeiro livro. Desde o início desse mesmo ano, eu trabalhava em uma das maiores editoras do país. Fui à noite de autógrafos, em Juiz de Fora/MG, nossa cidade natal. No dia seguinte ao lançamento, nos encontramos para um café e conversamos sobre a possibilidade de fazermos uma parceria para lançar o livro com divulgação e distribuição em escala nacional. Adiantei para ele que, para um projeto desses, o livro iria precisar de um título (o livro não tinha título!). Ele achou ruim comigo, advertiu-me para que eu tomasse cuidado para não me transformar em um editor vendido para o mercado. Li o livro na viagem de volta para São Paulo... e foi a minha vez de achar ruim. Odiei o livro. Liguei para o Ulisses, no mesmo dia, e falei que não havia chance de a editora publicar “aquilo”.

Em 2010, às vésperas do Natal, recebi uma ligação do Ulisses. Ele queria minha opinião sobre um material. Em três dias, recebi um exemplar encadernado em minha casa, que é basicamente o livro que você, leitor, tem em mãos, com algumas pequenas correções e alterações. Havia muito mais contos do que os que eu já havia lido em outras ocasiões, e estavam organizados em forma de livro. Continuei achando os contos meio incipientes e pouco elaborados, mas pensei que, com o devido cuidado, poderíamos transformar aquele apanhado de histórias em uma edição vendável. Na próxima reunião que tive na editora, expus o possível projeto e, apesar da resistência ao modelo “coletânea de contos” por parte do pessoal da equipe de avaliação de originais, o diretor de marketing achou que, dependendo da qualidade, valeria o risco, pois o mercado voltado para o público gay não parava de crescer.

Após uma semana, decidimos que iríamos publicar o Homo Sapiens. Apesar de meus protestos, fiquei encarregado do projeto. Tudo isso aconteceu sem a ciência do Ulisses, de modo que, quando dei a ele a notícia, ele demorou para entender o que estava acontecendo.

Os dois primeiros livros do Ulisses não tinham passado pela mão de um editor. Ele mesmo havia cuidado de tudo. Os livros foram publicados por uma lei municipal de incentivo à cultura em Juiz de Fora, a Lei Murilo Mendes. Acho que foi a melhor coisa para ele.

Eu nunca tive tanto trabalho para lidar com um autor como tive com o Ulisses. Ele se recusava a ser editado. Começamos bem, ele acatou algumas sugestões. Sugeri que eliminássemos alguns contos e ele concordou. Quando eu listei os contos que eu achava que deveriam ser retirados, ele surtou, reclamando da minha ignorância, de que eu não fazia ideia do que estava pedindo, que eu não havia entendido nada, etc.

Eu já estava pronto para desistir, quando encontrei, em viagem à Europa, Maria Bitarello, jornalista, grande amiga do Ulisses (sua alma gêmea, como ele mesmo acredita). Contei a ela dos perrengues que eu estava passando com a edição do livro dele. Foi um abençoado encontro. Em menos de uma hora, Maria me fez várias observações sobre o Ulisses, algumas de natureza profissional e outras de natureza pessoal, sobre suas referências e sobre seus caprichos. De alguma maneira, ela parecia entendê-lo. De volta ao Brasil, reli o livro, achei-o ainda pior, mas as ideias e obsessões do Ulisses me pareceram mais claras.

Liguei para ele e disse que iríamos fazer do jeito dele. Ele pareceu apenas satisfeito. Dei a deixa para que agradecesse à Maria, pois, se não fosse por ela, eu teria desistido de tudo. Logo depois disso, na semana seguinte, recebi a ligação que me pedia para escrever esse prefácio. Ele me falou de como eu era importante em sua vida, disse-me que eu era um grande editor e eu atendi o seu chamado. Mais tarde, quando retornei a ligação, condicionei meu aceite à minha liberdade para contar como ele havia me enchido o saco com esses contos desde os treze anos, e deixei claro que eu não iria encher páginas e páginas de falsos elogios. Minha condição principal era poder dizer que eu não gostava dos contos, de uma maneira geral, e que teria editado o livro de outro modo. Ele, que já havia aceitado tudo, pareceu não se importar com isso. Espero que ele mantenha essa postura e concorde com a publicação deste prefácio.

Rascunhei essa apresentação/introdução, porque não chega a ser um prefácio, e mostrei para minha esposa, Paula Bogarim, que também é editora. Ela censurou-me veementemente, argumentando que ninguém leria um livro com uma abertura como essa. Eu respondi dizendo que era a verdade, que eu havia escrito minha verdadeira opinião. Paula citou Oscar Wilde: “Uma pequena porção de sinceridade é perigosa, e uma grande dose dela é absolutamente fatal.”

Fiquei encasquetado por conta da conversa com a Paula. Esposas têm essa habilidade. No final das contas, acabei achando melhor deixar como estava. O que eu mais queria dizer já estava escrito. Para mim tanto faz se eu gosto ou não dos contos. Para o Ulisses também, não tenho dúvida disso. E os leitores também pouco se importarão com o meu parecer. O mais importante era contar a história desses contos, que começaram a nascer há quinze anos atrás. Você imagina a preciosidade que é um livro que tem esse tempo de gaveta? Consegue perceber a beleza e a teimosia dessa obra? Eu, quando me pego pensando nisso, admiro ainda mais esse meu amigo, por essa sábia paciência, essa espécie de prudência consigo mesmo, uma obstinação comedida. Sujeitos assim são raros.

Para terminar, não posso deixar de compartilhar publicamente minha alegria em ter estado tão intimamente ligado a esse Homo Sapiens. Mesmo com todos os aborrecimentos e incertezas quanto ao meu trabalho, sinto que cresci muito durante o processo. Alegria maior ainda é poder estar nessa posição privilegiada, a de participar da realização do sonho de um amigo, acalentado há tantos anos.

Minha esperança e meu desejo são que esses contos sejam lidos, apreciados e relidos. As histórias imaginadas e escritas pelo Ulisses têm o poder de tocar as pessoas, sempre foi assim. Esse livro, na sua essência, trata de uma questão. Muito além, trata-se de uma voz. Isso, sim, me tocou. Se há algo de maravilhoso nessas páginas, é isso: eu ouvi dizeres que mudaram o meu olhar. Coisas que pareciam congeladas derreteram.


Lecturis Salutem!

Boa leitura! 




Jonathan Walker 





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* Esse texto foi escrito quando o projeto original ainda era a edição um livro, cujo título seria Homo Sapiens. O acréscimo do Erectus veio somente no projeto do blog. Vale ressaltar que esse texto não viria no início da publicação, mas inserido no marcador o que eu sei sobre os prefácios.

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