BEIJO

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BEIJO 


À época de minha infância, eu adorava ir às festas de família na casa da Tia Tereza e do Tio Lauro. E eles faziam muitas festas. Natal era lá, quarta-feira de cinzas era lá, semana santa era lá. Mas eu gostava mais ainda dos aniversários das minhas primas, Júlia e Renata, porque além de todos os primos e agregados, vinham também os colegas das meninas. 

Quando eu tinha 10 anos, a Júlia tinha 18, e a Renata 20. Isso não era impeditivo para que eu estivesse sempre colado com elas, que me tratavam como seu eu fosse seu pequeno príncipe de brinquedo. Ligavam sempre para minha casa para me levar ao cinema, compravam presentes mesmo sem nenhuma ocasião especial e outras coisas parecidas, que demonstravam que elas realmente gostavam da minha presença. Para mim, aquilo era o suprassumo da benesse social, já que minhas primas eram bonitas, inteligentes, populares e ricas. 

A predileção que mereci gerava ciúmes e elogios de primos e tios. Nada que fosse muito relevante. Mas o melhor de tudo era que, nas festas, quando os mais velhos se separavam dos mais novos, e as crianças ficavam brincando pela enorme casa do Tio Lauro, eu ficava junto com a Júlia, a Renata e os amigos delas. Eles, os amigos, já de me ver em tantas festas e outros lugares com as meninas, também já tinham me adotado como o mascote da turma. 

Uma vez, quando já era bem tarde, meus pais foram até o quiosque da churrasqueira — que era onde ficava o grupo dos adolescentes — e me chamaram para ir embora. Eu falei que queria ficar, porque ainda era cedo, que eu queria dormir lá na casa do Tio Lauro. Então todo mundo começou a pedir, cantando: “deixa! deixa! deixa!”. Minha mãe argumentou que no outro dia eu tinha competição de natação, logo cedo, lá no clube, e que eu não poderia faltar. 

Então, nesse dia, uma admiração distante fez uma pequena brecha em meu coração. O amigo de sala da Júlia, o Otávio, que minha mãe conhecia lá do clube, interveio: 

— Dona Telma, se a senhora quiser, pode deixar ele aí. Eu também vou dormir aqui na Júlia e amanhã vou pro clube para ajudar o Gaúcho na preparação dos cronometristas do torneio de natação das crianças. 
— Nem precisa se preocupar, Otávio. Esse menino gosta é de dar trabalho! 
— Olha, Dona Telma, de coração, não é trabalho nenhum. Eu já vou pra lá mesmo... e, além disso, eu adoro o Vinícius, e todo mundo aqui vai ficar feliz se ele ficar. 

Mais um pequeno coro de “deixa!”, e minha mãe autorizou minha noite por lá. Fiquei, dormi, fui ao torneio de natação no carro do Otávio. Mas essa não foi apenas a única vez que ele intercedeu por mim. De verdade, mesmo, quando ele fez minha cabeça chacoalhar, foi quando eu tinha catorze anos. Era aniversário da Júlia, e toda a galera dela, que agora tinha bem mais gente, como o pessoal da faculdade de jornalismo que ela cursava, estava lá. Agora a galera da Júlia era diferente da da Renata, que estava já se formando em Medicina. A Júlia tinha duas galeras: a dos velhos tempos, da qual eu era mascote, e a da faculdade, que eu não conhecia ainda muito bem. 

O Otávio não gostava da galera da faculdade da Júlia, ou alguma coisa parecida. Aquele dia, mais cedo, logo no início da festa, eles discutiam algum assunto que não me lembro, e o Otávio emitiu uma opinião bem assertiva. Uma das colegas da Júlia, Lara, caçoou do Otávio, dizendo que ele “era mesmo um sábio e que, sem aquele sopro de sabedoria que ele lançara sobre a questão, eles nunca seriam iluminados sobre o dilema em que se encontravam”. O Otávio ficou puto. Nem falou nada. Fez cara de superior e entrou para ficar lá dentro com os adultos — os pais. Eu bem queria ir junto com ele. Aos catorze anos, eu já entendia bem melhor a minha fascinação pelo belo rapaz que era agora o capitão da equipe de natação do clube. Eu já sabia que minha admiração era mais por seu belo peitoral, pelas pernas, pela boca brilhosa do que por algum conhecimento sobre seu caráter. Até então. 

Naquele mesmo dia, já depois até do parabéns, o Otávio continuava lá dentro com os adultos, mas desceu até a churrasqueira, pois o freezer com as cervejas ficava por lá. Quando ele estava chegando, alguns amigos da Júlia caçoaram: “lá vem o sábio!”, e fizeram reverências. Então a Júlia, querendo cortar o clima que tinha ficado no ar, levantou o assunto que estavam discutindo para um aparte do Otávio. Ela, como o conhecia muito bem, achou que uma boa resposta — que ela supunha saber — poderia desfazer o mal-entendido. Digo isso porque, alguns anos depois, ela me disse que achou que o Otávio fosse dar uma resposta amarga, o que se harmonizaria perfeitamente bem com a opinião de seus colegas de faculdade e, dessa maneira, seria criada alguma empatia. O assunto em pauta era o poder de um beijo. Quando o Otávio entrou na roda, a Júlia o puxou pelo braço e perguntou: 

— Tavinho, meu nada romântico amigo do coração! Estamos fazendo uma pesquisa. Você poderia nos dizer se você acha que um beijo, apenas um único beijo, é capaz de mudar a vida de uma pessoa para sempre? 

O Otávio não hesitou um segundo. 

— Claro! 

Todo mundo ficou um pouco admirado com a rapidez e a firmeza dele. Mas tinha mais. 

— Um único beijo, Tavinho? — insistiu a Júlia. 
— Com certeza!
— Quem diria, hein, Tavinho! Você é mesmo cheio de surpresas! 

Então a amiga da Júlia, a Lara, pediu que ele justificasse sua reposta, mas que não poderia ser com nenhum argumento romanesco, ou saído de comédias românticas de má qualidade. 

— Bem, eu não tenho muitos argumentos sensatos a esse respeito, mas posso dar uma comprovação empírica do meu ponto de vista — replicou ele com muita serenidade. A essa altura, a galera já tinha sentido que estava para acontecer alguma coisa. 

— Você vai provar pra gente que um beijo, um só, pode mudar a vida de uma pessoa pra sempre? 
— Exatamente. Isso, é claro, se vocês precisarem de tal prova. 

E, obviamente, todos clamaram pelo experimento social do Otávio. Então ele pediu silêncio com a mão e continuou. 

— Voluntários? 

E um dos amigos da Júlia, o Daniel, que era gay, levantou a mão. Todo mundo riu — até porque todos levaram na brincadeira. Mas o Otávio, não. Olhou bem para o Daniel, com um olhar sério, e pediu para ele ficar de pé. Silêncio. 

— Daniel, não é? 
— Sim, senhor! — respondeu, tentando descontrair-se. 
— Prazer. Otávio. — estendendo a mão — Tudo bem se eu beijá-lo, Daniel? 
— Com certeza! 

O Otávio se aproximou do Daniel. Passou o braço inteiro pela cintura dele e o puxou para junto de si. Fechou os olhos e deu um beijo de arrancar a alma. O Daniel pareceu que iria desmanchar, não sabia nem onde colocava as mãos. E o beijo continuou por longos e, a mim pareciam, deliciosos instantes, para ambos. Então o Otávio foi soltando o Daniel devagarzinho, como se ele fosse coisa de quebrar. Respirou fundo, ainda de olhos fechados, com semblante de intenso prazer. Palmas para ele. 

Abriu os olhos, trocou o rosto para uma expressão professoral e atirou: 

— Pronto! Dito e feito!

E foi até o freezer e começou a sacar as cervejas lá de dentro, como se nada tivesse acontecido. Ninguém falou nada. Mas quando ele passou de novo pela roda, carregado com as cervejas, o próprio Daniel o interceptou. 

— Otávio, Otávio... não estou falando, nem de longe, que o seu beijo não foi um dos melhores que eu já tive o prazer de experimentar nessa minha curta vida. Foi realmente... bem, acho que não preciso explicar... você estava lá quando aconteceu. 

Otávio fez uma expressão boba, de quem não sabe receber um elogio. O Daniel continuou. 

— Mas mesmo tendo sido pra lá de perfeito, eu não sei se o seu beijo vai mudar a minha vida para sempre. O que coloca a sua comprovação empírica em xeque. 

O Otávio riu como um pai ri diante do ultimato do filho pequeno que não sabe do pouco poder que tem. 

— Meu caro Daniel, cujo beijo tem um gosto fresco que eu nunca vou me esquecer. Não sei em que momento eu me fiz entender erroneamente, mas eu nunca disse que um beijo meu mudaria sua vida. Não seria tão pretensioso. E, em minha defesa e de meu experimento, digo que não era essa a questão. A questão era se um beijo, e apenas um, poderia mudar a vida de alguém para sempre. E esse beijo, Daniel, que lhe dei com paixão e coragem desconhecidas por mim, com certeza, mudou a minha vida. Achei que isso estivesse claro desde o princípio. 

E ele foi lá para dentro. Triunfante. Bonito. Beijado. Mudado. 

Não preciso nem dizer que não foi apenas a própria vida que o Otávio mudou, para sempre, com aquele beijo.





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