ENGANO

arquivo em pdf



ENGANO 


Aurélio sobreviveu a uma escarlatina no seu primeiro ano de vida, quando todos acharam que ele não vingaria. Um ano após o susto, era impossível imaginar criança mais saudável e mais bem desenvolvida. Dessa época, Aurélio não se lembra. 

Quando tinha 4 anos, Aurélio descobriu aliviado que “fazer nebulização” não tinha nada a ver com ser cozinhado e servido como uma leitoa, o que obviamente não era intenção de seus pais. No ano que se seguiu, foi inevitável para Aurélio acumular outros muitos significados distorcidos e um saldo expressivo de alívios e decepções. Nessa época, não sabia o que era “semana que vem” nem “semana passada”, mas esperava ansiosamente a chegada do Coelhinho da Páscoa. 

Quando tinha 9 anos, Aurélio pensou que seu pai cedo ou tarde descobriria que havia sido ele o responsável pelo rasgo no estofado do carro. Enganou-se também, quando, um ano depois, confessou sua culpa, achando que o pai relevaria o malfeito e a omissão. Nessa época, tinha medo de ficar trancado no quarto, dos valentões da escola e de Deus. 

Aos 16 anos, Aurélio passou um mês planejando viajar com os colegas de turma, mas o passeio ao parque nacional nunca aconteceu. Um ano mais tarde, acalentou a esperança de ser amado por sua professora de francês, mas ela nem sequer lembrava o seu primeiro nome. Nessa época, gostava de meninas, de meninos e de filmes de sacanagem. 

Aos 25 anos, Aurélio desistiu da carreira de professor e voltou à universidade para estudar Medicina, esperançoso de que essa profissão fosse lhe dar mais recompensas do que a outra. Contudo, antes de completar um ano de estudos, abandonou a faculdade e voltou a lecionar. Nessa época, acreditava na democracia, na esquerda e nas histórias que os amigos lhe contavam quando voltavam de viagem. 

Seu primeiro filho nasceu quando tinha 36 anos, e Aurélio, em uma noite de satisfação plena, ouviu Ella Fitzgerald e tomou uísque, e não teve dúvidas de que seria o cabeça de uma família feliz e sadia. Depois de um ano, estava sozinho com o filho e precisava pedir ajuda para lidar com o menino e consigo mesmo. Nessa época, tinha dificuldades para dormir, para pagar as contas e para acreditar. 

Em seu aniversário de 49 anos, Aurélio prometeu à sua segunda esposa que venderia o carro que já havia comprado há mais de uma década. Um ano mais tarde, esse mesmo carro foi roubado em frente à portaria do condomínio em que residia. Nessa época, orgulhava-se de seu sucesso profissional, orgulhava-se da inteligência do filho e das declarações de amor que escrevia para a mulher. 

Com 64 anos, Aurélio olhou para o teto e viu o lustre como uma bola de fogo incandescente e em seguida a dor lhe tirou a consciência. Um ano após o infarto, estava correndo ao redor da lagoa, mesmo que nunca tivesse praticado esporte em toda sua vida. Nessa época, desistiu de assistir jogos de futebol na televisão, de tentar ser amigo de seus alunos e de comprar uma casa na praia. 

Tornou-se bisavô aos 81 anos, mas tinha receios de não ver o filho de seu neto preferido, pois estava muito doente e se encontraria com toda a família somente quando viessem para o Natal. Sua ansiedade durou quase um ano inteiro, mas, em meados de dezembro, estava assentado em sua poltrona com o bebê, que também se chamava Aurélio. Nessa época, sentia-se confortável na companhia de desconhecidos, confortável consigo mesmo, confortável mesmo no tédio. 

A festa que celebrou seus 100 anos de vida foi realizada no Haras Suíça, lugar no qual nunca imaginou que fosse colocar os pés. Um ano depois, tomando café da manhã, Aurélio se perguntou se viveria ainda muito tempo. Pôs sua vida, sua história, sob o escrutínio da memória e conseguiu contar infinidades de fatos, de eventos, de acontecimentos que se entrelaçavam com perfeição, de maneiras improváveis e inusitadas. 

Na noite daquele mesmo dia, a família reuniu-se mais uma vez para celebrar seu aniversário. A esposa de um de seus netos, com quem ele morava, apressava-se aflita para que o jantar saísse conforme o planejado. Porém, o assado de bacalhau, o prato principal da noite, escorregou-lhe das mãos pouco antes de chegar à mesa, misturando-se aos cacos de vidro e ao desapontamento da anfitriã. Aurélio, que já andava com um pouco de dificuldade, fez menção de se levantar para ajudá-la a limpar a bagunça, mas todos intervieram para que ele não o fizesse. Enquanto os outros davam conta de dar conta do imprevisto, Aurélio tentava consolar a esposa do neto, a quem tratava como uma filha. 

“Não se martirize por causa de uma travessa de bacalhau, Anita! Se você quiser, eu prometo que fico vivo por mais um ano para que, no próximo aniversário, o jantar saia perfeito como você planejou! Mas eu só posso prometer de minha parte, porque a vida tem muita dificuldade em aceitar os nossos planos, porque aquilo que as pessoas chamam de roda da vida é, para bem falar a verdade, a roda dos desenganos. Você sabia disso? Sabia que, na maior parte do tempo, estamos completamente enganados sobre tudo? Sobre tudo! Estamos sim, Anita. Não sabemos nada.” 

Nessa época, Aurélio acordava muito cedo, planejava detalhadamente todo o seu dia e, em seguida, gozava com intensidade as surpresas que lhe deixavam cada vez mais próximo de uma ignorância completa.





----------


----------

2 comentários:

  1. Parabéns, Ú. Excelente texto. Veio em boa hora!

    ResponderExcluir
  2. Você acredita que li esse texto seu hoje antes de ver que você tinha publicado???? Você me mandou por email uma vez e li hoje de manhã de novo!:O Agora vi que a Dutty colocou no facebook! Adoro esse texto! ;)Bjos!

    ResponderExcluir