FILHO

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FILHO


Perdi a hora, o voo.
Então desisti.
Decidi voltar.
Fiz uma pausa no caminho de volta, para descansar.
Antes da primeira luz do dia, eu cheguei em casa.

Tão logo abri a porta, senti cheiro de homem, de perfume de homem. Mas não era o cheiro do Daniel, meu filho, muito menos de seu perfume, que era sempre o mesmo. Não reconheci também o amadeirado sutil da colônia do Márcio, namorado de minha filha Sara. Havia outro homem, eu sei os cheiros que os homens têm.

Entrei silenciosa e vagarosamente, para não ser ouvido. Deixei a mala à entrada e minha pasta sobre a mesa da copa, o paletó acomodado no espaldar de uma das cadeiras. O corredor estava iluminado, mas ainda sem sol.

Do umbral da porta de meu quarto, vi meu querido, muito querido filho, deitado nu sobre minha cama. Daniel se parece muito comigo, em tudo. As semelhanças são tantas que, adormecido como estava, fazia com que eu me sentisse vulnerável. Na idade que ele hoje tem, tinha eu a mesma mania de raspar a cabeça. Temos o tronco muito parecido, o formato do músculo peitoral, mamilos muito pequenos. Daniel tem poucos pelos, como eu, mas é muito mais aloirado, por causa da mãe, certamente. As pernas também. Sara diz que caminhamos do mesmo modo, no mesmo balanço.

Ao lado do meu filho, havia outro homem, o tal cujo perfume não pude reconhecer. Não era um dos habituais amigos do Daniel que estavam sempre circulando pela casa. Era moreno, tinha uma pele luminosa, estava de bruços e não pude ver seu rosto. Também nu, também adormecido. Ao redor da cama, pelo chão, soltos no ar, nos corpos largados sobre o lençol branco de minha cama, todos os indícios de uma noite apaixonada, premeditada, gozada.

Fitei o rosto de meu filho por algum tempo. Algumas pessoas acordam quando estão sendo observadas. Quis que seus olhos se abrissem para me ver ali, parado, a contemplá-lo. Não aconteceu. Pensei que Daniel pudesse não estar dormindo, mas apenas fingindo, que me ouvira entrar e estava apenas sem saber o que fazer. Era o tipo de coisa que eu faria.

Recuei, peguei minha carteira na pasta, coloquei o paletó, pronto para sair. Pensei melhor, tirei o paletó e a gravata, dobrei as mangas da camisa e fui. No caminho até a padaria, pensei em Marta, minha esposa, que não conhecera o filho, não o vira sequer uma vez. Em meus pensamentos, contei a ela o que acabara de acontecer. Eu ainda tenho esse hábito de conversar com ela, com sua memória. Sempre que o faço, acabo por dizer a ela: “Mas pra que estou lhe contando isso? Você estava lá!”

O café servido pela padaria era dos melhores da cidade. Comi também um misto quente. Nas sacolas que eu carregava de volta pra casa, além de pães quentes, havia presunto, mussarela, dois iogurtes de morango, uma caixa de cereais e uma garrafa de suco natural de laranja. Quando abri novamente a porta, outro silêncio, desses urgentes, tomou cena. Ouvi os passos de Daniel a caminho da cozinha (ele já sabia de meu retorno, minha gravata não estava na mesma posição em que deixei).

Ele apareceu, de cuecas brancas. Eu também já fora assim tão bonito. Ele não disse nada, tentava captar os pensamentos do pai. Não resistiu por muito tempo, com o silêncio, e conversou sobre o que podia:

— O que aconteceu?
— Eu perdi o voo. Desisti da viagem.
— Mas não era importante?
— Era. Era. Nem tão importante, talvez.

Um ruído vindo do meu quarto desviou nossas atenções. Não havia motivos para evitar o assunto.

— Olha, pai, nem me passou pela cabeça que você poderia voltar, senão eu não teria...
— Filho... — eu o interrompi — eu também fui pego de surpresa. Entrei em casa, senti um cheiro desconhecido, vi vocês dois na minha cama...
— Desculpa ter usado sua cama, é porque...
— Não se preocupe com isso. É uma cama, não um templo, não carece de reverência. É a melhor cama da casa, eu sei.

Vi algum alívio no olhar do Daniel. Eu estava aliviado.

— Então você viu a gente?
— Vi. Vi mais você, porque seu amigo estava de bruços, com a cara no travesseiro.

Ele não sabia como continuar. Eu quis ajudá-lo.

— Quem é ele? Eu o conheço?
— Não. Ele nunca veio aqui. Mas já é meu amigo há bastante tempo... da faculdade.
— Como ele chama?
— Daniel também...
— Mesmo?
— É... — ele sorriu. Eu também. Somos homens bonitos, ambos.
— Ele é só um amigo? — arrisquei.
— Não sei. Eu não sei.

Como dizer as coisas importantes em horas importantes? Eu queria muito dizê-las, ainda que não as soubesse, então me permiti continuar.

— Eu tenho tantas perguntas para lhe fazer, meu filho, mas não sei como começar, nem sei por onde começar. Tenho medo de invadir seu espaço, entende? Mas eu quero saber sobre você, o que for possível, porque eu quero estar perto.
— Eu sei.
— Mas tudo no seu tempo, ok?
— Ok.

Achei que ele não fosse mais dizer, contudo, deu um passo adiante e abaixou o tom e o volume da voz.

— Eu gosto dele, do Daniel.

Eu demorei para perguntar.

— Ele é o primeiro?
— O primeiro o quê? — falava ainda mais baixo.
— Com quem você transa?
— Não.
— O primeiro por quem você se apaixona?
— Também não. — ele fez uma pausa, olhar para dentro — Mas eu gosto dele, muito.

Acho que a palavra é satisfação. Foi o que senti ao ouvir o encantamento na voz do meu filho.

— E eu vou conhecê-lo?
— Agora?
— Por que não? Ele está aqui! Eu já até o vi pelado!

Daniel me encarou, focado nos olhos, buscando confirmação para minha proposta. Era típico dele, esse gesto. Só dele, eu não fazia isso. Concordou e sumiu pelo corredor que, agora, estava desenhado pelas linhas iluminadas, o sol no chão, nas paredes, entrando por todas as frestas. Só então percebi que estava com as sacolas na mão, sem notar o peso.

Houve um cochichar distante. Levaram uns três minutos para aparecer na copa. O rapaz que dormira em minha cama era um pouco mais baixo que Daniel. Estava descalço, usando calças jeans e esquecera, ou não tivera tempo, de abotoar o último botão da camisa.

— Esse é o Daniel, pai! — apresentando-nos.

O rapaz se adiantou para me cumprimentar. Tinha a mão firme, o olhar decidido de quem precisa, quer e acredita que será aprovado.

— Então somos três! — disse eu, também me chamo Daniel.
— Acho que sim... — ele respondeu, correndo os olhos de mim para o meu filho, ainda apenas de cuecas brancas, lindamente delineado e colorido, sorrindo para o amante.
— Eu trouxe o café da manhã. Por favor, Daniel, fique à vontade.

Ele fez um esforço para se sentir à vontade, puxou a cadeira nervosamente; notei que se esforçava para disfarçar a insegurança e gostei dele.

— Você trouxe iogurte, pai?! Você nunca traz iogurte!
— Mas hoje nós temos visita, não é mesmo?

Eu me assentei à mesa com os dois e tentei retomar o assunto do atraso da viagem, para dar a eles — e a mim — um tempo para a aproximação. Perguntei também sobre a faculdade, sobre as coisas do Daniel, o meu, e outros temas de respostas fáceis. A irmã, ele me contou, dormira na casa do namorado, para que eles pudessem ficar sozinhos, e retornamos, mais confortáveis, ao assunto.

— Então quais são as suas intenções com meu filho, Daniel?

Ele não percebeu o chiste, mas foi salvo pelas risadas do meu menino. Era para ser uma brincadeira, para recomeçarmos com risadas, uma pergunta com função meramente discursiva. Porém, desavisado de que era assim que eu e meu filho dizíamos as coisas importantes, Daniel, o recém-chegado, olhou com ternura a risada de seu par, respondendo a minha pergunta: havia intenções e apostas; parecia disposto a correr o risco.

Havia agora esse homem, um outro Daniel, apaixonado pelo meu filho. Parecia um bom homem, um bom menino. Admirei minha cria.

Juntos, nós três demos conta de consumir a pequena compra feita na padaria, mas não estávamos saciados. Daniel procurava na geladeira por mais comida, e foi impossível para o outro Daniel, mesmo sob meu olhar, não dar atenção ao corpo que se dobrava à luz interna do refrigerador.

Meu filho, ainda com a porta da geladeira aberta, dirigiu-me outro semblante, outra questão.

— O que você acha que minha mãe faria nessa hora?

Eu já havia ouvido essa pergunta milhares de vezes. Eu mesmo, em um afã de criar para meus filhos uma memória da mãe, da maravilhosa mulher que havia sido minha esposa, os incentivei a adorá-la, mesmo morta.

— Ela faria panquecas. São fáceis, tem-se muitas possibilidades, e ela adorava...
— Não! Eu estou falando de mim! O que você acha que mamãe faria se fosse você, se tivesse me encontrado aqui em casa, dormindo com outro homem na cama dela?

Era sincera, gravemente sincera a dúvida que meu filho me trazia.

— Eu acho, meu filho — eu tentei sorrir — que ela faria exatamente o que eu fiz. Iria à padaria, bateria a porta na saída para que vocês acordassem e notassem sua presença. Demoraria por lá, como eu fiz, e voltaria para casa, pronta para viver um momento feliz e inesquecível ao lado de seu filho. E acho que ela faria panquecas, porque ela adorava panquecas.

Levantei-me e pedi sua ajuda, e logo estávamos, acompanhados pelo novo Daniel, fazendo panquecas, na manhã, que já estava clara, com calor. Acrescentei, em algum ponto das conversas, outras possíveis colocações.

— Acho que sua mãe, num dado momento, fingiria surpresa ao ver que você ainda está só de cuecas. Pediria desculpas por seu comportamento e o mandaria vestir suas calças. No breve tempo em que estivesse sozinha com o Daniel, diria frases como: “Cuide bem de meu tesouro!” ou “Você será sempre bem-vindo por aqui”. Ao seu retorno, filho, ela lhe faria um elogio, e outro a você, Daniel, e lhes desejaria prudência e felicidade. Dispensaria-os de lavar a louça. Abraçaria os dois, antes do final da manhã.





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