AMIGO

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AMIGO


O grupo foi se dispersando aos poucos e, após a última despedida, Marcelo ficou sozinho com o amigo Sérgio na praça de alimentação do shopping.
— Então? O que você achou dele?
— Ah, dá um tempo, Marcelo!
— O quê?
— Que diferença faz se eu gosto ou não do seu namorado? Quanto tempo você vai ficar com ele? Três meses?
— Agora é diferente, Serginho! Eu gosto do Fábio!
— Gosta, é? Legal.
— Tô falando sério, Serginho. O Fábio é especial para mim.
— Ah, para com esse papo, cara! Que especial droga nenhuma!
— Você tá com ciúme, Serginho?
— Olha para minha cara e vê se eu tô com ciúme.
Marcelo olhou mesmo, até porque gostaria muito de ver o amigo enciumado. Não era o ciúme que perturbava Sérgio. Marcelo não soube o que dizer. Amassou os guardanapos sujos sobre a mesa, colocou-os dentro do copo descartável. Juntou as bandejas. Deixou o assunto para lá.
— Você ficou chateado, Marcelo?
— Eu? Não! Só achei que você tinha gostado do Fábio! Você deu atenção para ele a tarde toda, falaram de sei lá o que vocês podem ter em comum, mas eu vi que você estava se esforçando...
— E eu estava. E ele também, porque estava óbvio que ele queria que eu gostasse dele. O problema não é esse, Marcelo. O cara é gente fina. O mais gente fina que você já apresentou à galera.
— Então! Qual o problema?
— Deixa pra lá, vai!
— Fala, Serginho! Que merda é essa? Vai ficar de charminho agora?
— Não é a hora nem o lugar de conversar sobre isso!
— Serginho, eu tô te pedindo, cara! Fala qual é a birra...
Sérgio pegou a bandeja que o próprio Marcelo havia ajeitado, levantou-se e foi até a lixeira. Teve um pouco de dificuldade para enfiar todo o lixo no recipiente que já transbordava. Voltou e sentou-se de frente para o amigo, determinado a falar, então.
— Sabe o que é?
— Hã?
— O Fábio é mesmo especial?
— É. De verdade.
— Especial pra quê?
— Como “especial pra quê”? Especial para mim!
— E o que você vai fazer com ele? Namorar? Casar? Ter família? Ser feliz pra sempre?
— Não tô entendendo você, Serginho! Que paranoia é essa agora?
— Isso não tá certo, né, cara!
— Você ficou louco, Serginho! Vai me dar uma de preconceituoso justo hoje? Ah, fala sério, cara! Você tá falando sério mesmo?
— Não é preconceito, Marcelo! O papo não é esse! É até sacanagem você falar isso comigo!
— Foi mal, vai. Eu não quis dizer isso. Pelo contrário, você sabe. Você foi o melhor “melhor amigo” nesse processo todo.
Marcelo tocou o ombro de Sérgio. A lealdade e boa vontade do amigo eram raras de se encontrar.
— Posso falar? Rasgado?
— Lá vem!
— É que tudo bem você querer transar com outros caras, e ver pornografia para gay, e ir no Bar do Arroz, nada disso é problema, Marcelo! Seu pau é só um pedaço de carne, e não faz a mínima diferença onde você enfia ele! Mas essa história de arrumar namorado e querer levar isso adiante é muito bizarro!
— Bizarro por quê?
— Bizarro porque não é normal! Olha ao seu redor! Cadê? Cadê? Me mostra um casal de veados andando de mão dada!
— Caralho, Serginho, você não pode estar falando isso! Eu tô sonhando que isso tá acontecendo!
— Mas é verdade!
— É a estaca zero de novo! Antes disso! Você está antes da estaca zero! Não é possível que você esteja falando sério, Serginho!
O desespero de Marcelo, ao se ver abandonado, comoveu Sérgio. No entanto, era inegável que deveria ir adiante.
— Olha, Marcelo. A gente é amigo desde que nasceu. E desde que você começou com essa história de ser gay e tudo o mais, eu não dei pra trás em hora nenhuma! Eu me esforcei pra entender, pra te dar força com a família e até comprei briga por causa das suas extravagâncias, cara! Tudo isso porque você é como se fosse meu irmão! Você sabe que eu te amo de verdade, cara! Você sabe! Mas eu tô falando o que eu penso. É óbvio que eu entendo que cada um tenha lá seu desejo, que você gosta de ficar com outro cara, até de dar a bunda, eu sei. Eu não sou um ignorante! Eu entendo que as pessoas são diferentes! Eu só estou dizendo pra você se dar uma chance de separar as coisas. Fode o quanto você quiser, o cara que você quiser! Mas depois escolhe uma mulher e casa, e tem filho, e vive feliz pra sempre, ou divorcia, ou sei lá! O que não dá é para fingir que é normal viver com um homem, de chamego pra cá, carinho pra lá, como se fosse casal, isso é que não dá, cara! Entende o que eu tô dizendo?
Marcelo achou que pudesse estar tendo um derrame, pois todo seu senso de percepção estava alterado. Não sentia os pés, o coração parecia trabalhar com enorme esforço. Tinha a garganta amarrada. Suava mesmo no ar condicionado. A visão estava perfeita, mas a figura do melhor amigo parecia distorcida. Via o amigo feio, o que antes lhe era impossível.
Então ele chorou. Pouquinho, mas sem pudor. Sérgio ficou sem graça, não pelo público ao redor, mas porque viu que magoara Marcelo.
— Não fala mais nada, Serginho...
— Marcelo...
— Pelo amor de Deus, cara! Não. fala. mais. nada.
— Eu não queria dizer... eu queria que você entendesse...
— E eu entendi. E você pode ficar quieto agora!
Sérgio aquiesceu, contrafeito. Mantiveram, ambos, as cabeças baixas, sem coragem para olhar de volta.
— Eu espero, Serginho, que um dia você consiga enxergar de outra maneira. Eu tenho certeza que esse dia vai chegar, porque eu vou me esforçar pra isso.
— Eu também, Marcelo. Desculpa se eu fui escroto.
Marcelo se levantou, Sérgio também. Ficou implícito que iriam embora. Juntos, estavam no mesmo carro, moravam na mesma rua.
Em um dos semáforos, parados, Marcelo não resistiu; confessou ao amigo.
— Desde o dia que eu saquei que eu era mesmo gay... que era assim que ia ser e pronto... hoje foi o dia mais difícil e mais triste, Serginho. Eu queria voltar no tempo e não ter ouvido as palavras que você me disse. Você me fez, mais do qualquer inimigo, me sentir mal comigo mesmo. É como se eu fosse adolescente de novo! Ô porra de dia mais sem jeito!
Marcelo inspirou e expirou com força, tentava se livrar do mal-estar. Sérgio também se sentia desconfortável; não tanto quanto o amigo. O dia fora mesmo ruim e não seria apagado de nenhuma memória.





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