REVERÊNCIA


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REVERÊNCIA



Vila Pátria era muito pequena, cidade fácil para aprender a se comportar. Dar licença aos mais velhos, às mulheres, aos mongoloides e aleijados. Não entrar de mangas dobradas na igreja, lavar a garrafa do leite antes de o leiteiro chegar, só ficar embriagado de verdade no carnaval.

O carro funerário de Vila Pátria, propriedade da prefeitura, era inconfundível e, quando vinha arrastando seu cortejo, todos paravam no lugar em que estavam. As mulheres baixavam as cabeças e juntavam os pés. Os homens tiravam o chapéu, e todos, incluindo os pequenos, faziam o sinal da cruz.

No 16 de junho, bonita e fria manhã de outono, o carro funerário atravessou Vila Pátria sem cortejo, pois o corpo que carregava não tinha amigos. Era o corpo de um pecador, pervertido por ordem das forças sombrias. Nenhuma mulher escondeu o olhar ou aproximou os tornozelos, nem a imagem da cruz foi desenhada no ar. Ao contrário, homens diziam a alta voz: “Peste! Demônio! Sujo!”.

Um dos rapazes da cidade, apressado na sua juventude, viu o automóvel preto se aproximar e parou, tirou o chapéu e fez em-nome-do-Pai, do-Filho, do-Espírito-Santo, Amém. Guardou alguns instantes de silêncio, olhos semicerrados, respiração de profunda reverência. Em seguida, continuou seu caminho.

Os olhares que o acompanhavam não ousaram interpretar sua atitude. Parecia a todos pouco provável que ele soubesse quem era o morto. Ou talvez soubesse, mas era bom moço, cristão de verdade, compaixão irrestrita: um exemplo. Ou havia sido fisgado pelo pecado, vítima lúcida das artimanhas do anjo caído.






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