OUTRO

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OUTRO 


Eu ouvi os passos de Miguel subindo as escadas, passo pesado. Não tenho certeza, mas meu coração deve ter congelado nessa hora. Ele demorou para achar a chave e, quando finalmente abriu a porta, eu já estava armado em minha postura. As malas arrumadas eram parte da mensagem que diriam que a decisão havia sido tomada, pelo menos acho que foi essa minha intenção, e que minha partida era irrevogável. Miguel me perguntou “O que é isso?”, mas ele sabia exatamente o que estava acontecendo, meus olhos obstinados evitavam olhá-lo diretamente. “Não dá mais para mim”, eu disse, e Miguel, que não era insensível como as pessoas julgam, não prestou atenção ao sentido das minhas palavras, mas entendeu completamente como deveriam ser dolorosas para mim naquele momento. 

Ele fechou a porta, jogou o paletó e alguns papéis na mesa e veio se assentar ao meu lado. Eu me esquivei de estar próximo dele e ele notou que eu estava empenhado em não ceder. Então Miguel – eu acho que essa pode ter sido a maior mágoa que ele me causou – desistiu de mim. Ele poderia ter argumentado, gritado, implorado para eu ficar, falado que era mentira, que me amava. Mas ele sequer me pediu desculpas, nem esforço fez para continuar qualquer conversa. Mais uma vez Miguel estava se esquivando do confronto e nem se envergonhava de sua covardia, pelo menos naquele dia, mas agora vergonha é o seu nome. Eu poderia e deveria ter partido sem dizer nada, no entanto Miguel deixou escapar seu egoísmo e sua injustificada autocomiseração em um quase inaudível “Eu entendo”. 

Nessa hora foi possível ver as veias do meu pescoço se dilatarem e o meu rosto queimava um vermelho enfurecido. Ele soube o porquê. Ele entendeu o quão cruel havia sido comigo, não só naquela hora, mas nos últimos quatro anos. Ele começou a se arrepender de me perder, de ter percebido que dificilmente encontraria um homem com tanta disponibilidade e habilidade para um relacionamento como eu. O que mais me entristece foi que Miguel, mesmo nessa hora, não se importou com os meus sentimentos, senão com sua perda. Ele acabou por ver seu erro, mas demorou muito.

Era o que eu falava incontido: 

“Você não entende! Não fica aí fazendo cara de que você entende, porque você não entende porra nenhuma! E não entende porque não se esforça, porque só pensa em você, tudo é você! Eu é que fui otário de também achar que tudo era você! E você foi tudo pra mim durante muito tempo, tudo, tudo! Você sabia disso e se aproveitou! E eu não me importaria se pelo menos eu ocupasse um lugar parecido na sua vida! Mas você não conversa, você não está nem aí! Agora a culpa é minha também, que fiquei atordoado com o príncipe encantado que eu jamais sonhei que teria! Fiz tudo pra te agradar! Que merda! Príncipe encantado é o caralho! Eu me odeio por ter acreditado que você era um cara atencioso, que estava mesmo interessado em viver junto, que era honesto, que era homem de verdade! Você é um moleque! Você é um moleque inconsequente e egoísta! E eu sou um idiota que de repente abriu os olhos e viu que não precisava mais aguentar um bosta como você pisando em cima de mim! Agora tudo tem um lado bom: se você não tivesse me humilhado tão covardemente, sem nenhum escrúpulo, era capaz de eu ter perdoado você e ainda ter ficado achando que eu não estava à altura do bonitão aí! Mas graças a Deus você é mesmo um imbecil, e agora eu estou livre de você! Eu nunca mais quero ver sua cara maldita e só de pensar que eu te amei me dá um arrepio de vergonha! Você é um merda! Um merda! Agora vai procurar outro otário pra você levar vantagem! Vai! Vai, que eu sei que tem um monte de retardado igual a mim, que acreditam que você é um partidão, que não fazem ideia de que você não dá a mínima pra ninguém! Vai lá! Cadê o seu último putinho? Liga pra ele! Chama ele para vir morar com você! Quem sabe ele não vem! Ou será que ele também já sacou o escroto que você é? Você é inacreditável...” 

Eu saí, arrasado, cansado dele e de gritar, e bati a porta. Ele ficou sentado no sofá. 
Não! Espera! Não foi bem assim! Eu fiquei no sofá.
Fui eu que fiquei no sofá. 

O filho-da-puta era eu! Foi o pobre do Miguel que desceu as escadas carregado de mágoas. Ele havia tomado a decisão de deixar tudo para trás, a traição, o vexame, a mim. Foi isso mesmo! Não foi o Miguel, e sim eu que fiquei imóvel na sala, sentindo-me humilhado por ele ter razão. Fui eu o escroto que, em uma situação como essa, só me importava com o fato de que eu estava sendo abandonado, e não o contrário. Fui eu que recebi devidamente cada um dos desaforos cuspidos pelo Miguel. E ele... ele não merecia ter sofrido tanto por conta de um cara como eu. 

Eu não fiquei sentado ali para sempre. Levantei-me, tomei um banho demorado, tive enxaqueca, não dormi bem. Continuei a vida, fodi outros homens, feri outros homens, fui ferido. Corri por outras escadas, fiz também as minhas malas, ignorei portas abertas e me ressenti de portas batidas à minha passagem. Passei horas naufragado em inclementes sofás, que parecem se sentir bem, ou não sentirem nada, mesmo quando estamos morrendo sobre eles. 

Vez ou outra eu me lembro das expressões do Miguel naquela noite. Eu sinto o cheiro daquele antigo apartamento e sei exatamente onde estava cada coisa. Demorei para achar a chave, quisera eu nunca tê-la encontrado. No entanto, abri a porta para vê-lo pela última vez. O esforço de Miguel foi a única coisa que me comoveu naquele miserável dia, e eu o admirei quando ele saiu para nunca mais voltar. Sentado no sofá, foi só o que me dignei a pensar sobre ele. O resto era sobre mim, sempre sobre mim. 

Hoje... hoje eu estaria mais preparado para um homem como Miguel. Eu daria mais atenção a ele do que a mim. Custa-me admitir, mas Miguel tinha razão, mesmo em seu desabafo enlouquecido – eu nunca o imaginei tão furioso e lançando mão deu um discurso tão rude. Hoje, se eu pudesse, eu compraria um manual do Miguel, e decoraria cada folha, cada detalhe, e me submeteria a um exame avaliativo, e seria aprovado com louvor. Saberia como ouvi-lo, como agradá-lo, como ajudá-lo. Arrependo-me de não ter visto as malas e logo ajoelhado aos seus pés e clamado por perdão. Poderia, se tivesse uma vaga noção de quem eu era, ter convertido todas as minhas forças em ações para reconquistar seu respeito, para granjear alguma sensatez e aprender a amar. Choro por não encontrar corações como o de Miguel. 

Se Miguel entrasse por aquela porta neste exato instante, eu o reverenciaria, sinceramente, entendendo a grandeza de um homem comum, dos que amam. Mas não posso ignorar que a satisfação maior dessa adoração seria minha, pois o meu ego devastador me ensinou também essa outra maneira de usar os outros para o meu prazer.









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