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CENSURA
Depois de se servir de uísque, Arturo assentou-se em sua poltrona na varanda e cobriu as pernas para se resguardar dos arrepios garantidos pelo frio crepuscular do final de outono. Há alguns dias, talvez uma semana, vinha repetindo esse ritual contemplativo de olhar a cidade pelos fundos da casa. A vista impressionava a todos os visitantes, e a ele mais ainda, que havia redescoberto um caro espaço.
Mais cedo — nos momento de contemplação era certo aflorar o mais cedo — ele havia estado em reunião de família, comemoração de aniversário, o seu e o de Enrique. Hoje, sentia-se injuriado sobre a mesma ferida, e se via obrigado a admitir que os filhos e as filhas haviam alcançado o virtuosismo de um musicista no trabalho de um torturador. Não houve discussões, nem arremedos, nem perguntas retóricas. Nem a filha mais velha, Elizabeth, o ferira com suas falsas gentilezas. Pouparam-nos dos olhares, das conversas em sua direção, das recomendações a Enrique sobre sua saúde, dos assuntos que evocavam a velhice do homem. Cinco anos mais cedo, a primeira vez em que levou Enrique para sua festa de aniversário, foi anunciada a batalha que seria retomada em natais, bodas, jogos da seleção. A ex-mulher ainda era viva e, entre outras palavras, lembrou-se de dizer “sodomita, Alzheimer, gigolô, câncer nas bolas e filho-da-puta”. Ano passado, já abrandadas as hostilidades, apenas as velas sobre o bolo: 24, 64 e sorrisos sem deboche, com piedade. Arturo pediu forças para manter a postura mais uma vez, mas já lhe enfadava demais a reprovação dos filhos à sua relação com Enrique.
Enrique era quarenta anos mais novo, portanto apenas lera sobre o terror da ditadura recente. Obviamente não era essa lacuna que tanto incomodava os filhos ao verem o pai desfilando o jovem namorado, que calhava de comemorar o aniversário no mesmo 31 de maio. Da primeira vez, Enrique ainda tinha vinte anos, e Elizabeth fingiu perguntar se ele já tinha idade para estar ao volante quando o viu chegar dirigindo o carro do pai.
— Tenho, sim senhora! Hoje estou fazendo vinte anos! — Enrique respondeu com gentileza e fingiu desprezar a provocação da improvável nora — Na verdade, eu já dirijo desde os catorze, mas confesso que sempre fico apreensivo com esse carro do seu pai. Toda hora acho que ele vai se desfazer no meio do caminho! Já prestaram atenção nos barulhos?
Alguns outros riram e aceitaram a simpatia de Enrique, afinal eles mesmos faziam troça com o velho carro que o pai se recusava a vender. Elizabeth persistiu, no entanto.
— Se você entende o perigo que é esse carro, então não deveria aceitar dirigi-lo!
Enrique hesitou uns poucos segundos.
— Eu bem sei que tenho enfrentado perigos maiores do que este... mas não se preocupe, ultimamente descobri talentos especiais para lidar com artigos mais velhos — e piscou, de um olho só, para Elizabeth, com um olhar lascivo, como se ela compartilhasse e vibrasse com seu comentário malicioso.
Esse foi o momento primeiro que fez com que Enrique conquistasse inimigos e respeito dentro da família, deixando Arturo arcar com as provocações que viriam nos anos seguintes.
Arturo Arriaga era um ícone da resistência à ditadura. Lutara com armas, palavras e amigos contra o regime que buscava varrer elementos subversivos; regime que se acabou por nunca saber o que era a subversão. Esteve exilado, com mulher e filhos, mas voltou. A despeito da insistência da imprensa e do próprio senso de dever que clamava por denúncias, evitava recontar as histórias que vivera. Fora torturado, contou finalmente ao filho mais novo. O país inteiro sabia, mas ele levou tempo para relembrar a morte do pai, a morte do irmão, presenciadas por ele.
— Enrique! — olhou para trás para se certificar de que estava sendo ouvido. — Enrique! Vem ficar aqui comigo!
Enrique trouxe sua própria coberta e uísque, e ajeitou-se na rede. Arturo esperou um pouco.
— De todas as pessoas vivas, Enrique, você é quem mais sabe sobre os infernos que eu sofri por conta da merda desse país, mas eu temo ter que usá-lo, de emergência, para fazer mais algumas confissões e divagações... de alguma maneira esse assunto não se esgota e eu continuo vivendo, e me incomodam até mesmo minhas leituras diárias que me lembram que tudo isso já passou faz tempo... Eu estava aqui me lembrando do dia em que o Raul me ligou no meio da noite. Tinha ficado sabendo por um infiltrado nosso que iriam fechar o jornal e recolher as prensas. Eu e a Lurdes pegamos o carreto, deixamos a Beth e o Gui sozinhos em casa, e resgatamos uma máquina, era o máximo que podíamos fazer. Durante seis anos, não, menos, uns quatro anos, a prensa que era do Diário rodou o material “subversivo”. Ríamos quando ficávamos sabendo dos rompantes de fúria do Capitão Mega, que não se conformava em não rastrear nosso quartel-general anti-censura. Ficava aqui, nessa casa. Essa era a casa do Chico Dunga, o brasileiro que nos ajudava. Eu não gosto de falar sobre a censura nas entrevistas porque o povo ainda não quer ouvir a respeito, eu acho isso pelo menos, porque todo mundo ainda quer ouvir sobre as mortes, as torturas, e quer saber como era exatamente a tortura, em que eu pensava na prisão, no exílio, e como escapamos do episódio de Plaza Luna. Mas de vez em quando eu penso em contar da diversão. Quando dei aquela entrevista aqui em casa, para o canal brasileiro, quase contei uns casos engraçados. Eu me diverti muito nessa época. Eu ficava aqui na casa do Chico Dunga, com o Raul, Ernani, o pessoal da universidade, a Lurdes e a Nanci, que na época eram amigas, e bebíamos o que fosse bebível. Uma vez, o Raulzito, que chamava Aurélio, eu já contei essa história do apelido? Então, ele misturou álcool etílico no suco de pêssego e ele mesmo quase entrou em coma com aquela merda. E ríamos, e compartilhávamos um prazer de sermos procurados, e de alguém querer censurar nossos panfletos, as peças de teatro, até mesmo nossos telefonemas no trabalho, e olha que o Ernani trabalhava em loja de pano. A censura dava força para o movimento, para a resistência. Eu amava a censura, Enrique! Falo sem medo. Eu me sentia bem em saber que aquele cretino do Mega se contorcia de ódio com o simples fato de eu existir. Uma vez eu falei isso pro Felipe, e a Lurdes me repreendeu, mas ele já tinha vinte anos e já sabia bem o gosto da rebeldia. Eu sempre falo isso para os meus filhos: não se acanhem com as censuras! Não tenham medo! Censura é só censura! É só desrespeitar! Você já notou como todo mundo lá em casa é combativo? Todo mundo quer sempre discutir, quer dizer o contrário, ou quer fazer escondido. Quando é contra o vizinho, fica tudo no pedestal, mas quando é entre nós, como quando o Bruno roubou o carro da mãe, a culpa é do espírito revolucionário… Eu amo demais minha família, Enrique, mas hoje eu notei que não houve uma repreensão sequer, você notou? Nada, nada, nem… nada, não falaram nada! Eu sei que queriam falar e etcétera, mas eles querem agora me ferir de outro jeito, eu sei, por isso deixo estar como está. Só estou falando isso porque, antes de você vir para cá, eu estava aqui pensando que eu morro de medo de ser ignorado, de um dia esse respeito todo que eles fingiram prestar já seja um sinal de indiferença, entende? Você acha que foi isso, que eles já estão pouco se fodendo pra mim? Não responde... nem ri! Para de rir!
Arturo riu junto com Enrique. Logo escureceu e esfriou, eles entraram enrolados nas cobertas. Enrique voltou lá fora para buscar os copos e a garrafa de uísque. Beberiam, por sugestão de Arturo, às censuras que os mantinham animados a rir e a resistir.
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