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O que mais me excita nessa história é o fato de ela ser real. Na minha cidade, Juiz de Fora, litoral de Minas Gerais, todos a conhecem, mas poucos sabem dos detalhes que eu agora vou contar. Esses pormenores me foram confidenciados pelo próprio Vinícius, meu colega de trabalho há mais de cinco anos.
O Vinícius era muito tímido, quer dizer, ainda é muito tímido. Até hoje ele se admira com a ousadia que lhe rendeu essa boa história. Pois o Vinícius era um apaixonado nato. Quer dizer, é um apaixonado nato. Ele estava sempre de olho em alguém, de prontidão para viver seu grande amor. Mas sua vontade de outro homem não saía nunca de suas fantasias, pois não se arriscava a trocar uma palavra sequer com os homens por quem se apaixonava.
O que mais me diverte nessa história é que a inércia solitária do Vinícius foi interrompida por uma dica de horóscopo lida em voz alta por uma outra colega de trabalho. Dizia: “Virgem: você é um ser único e, por isso mesmo, o único responsável por sua felicidade. Seja corajoso e transforme seus sonhos em realidade. Palavra-chave: estratégia. Para ser alguém melhor: intuição. Dia favorável: quarta-feira.”
O Vinícius andava apaixonado por dois homens. Um deles era o Rômulo, ator de uma companhia de teatro amador da cidade, alvo também da cobiça de outros tantos. O Rômulo era alto, forte, taurino, traços napolitanos, cara de troglodita, mas um dos mais sensíveis homens para entender a humanidade, habilidade que o transformou em um grande ator. Era também professor de filosofia na universidade, o que aumentava sua popularidade e seu fã-clube. O outro era o Saulo, que era quase seu vizinho, pois alugara a casa em frente à do Vinícius para transformá-la em seu consultório odontológico. Tinham em comum a circunspeção, pois sempre que se cruzavam trocavam apenas breves sorrisos e olhares cordiais. O Saulo era pequeno, moreno, geminiano, e tinha olhos pretos que adiantavam suas maneiras gentis. O Vinícius fala que não acredita, nem nunca acreditou em horóscopo, mas que achou que os conselhos da revista poderiam lhe ser úteis. Quando eu perguntei a ele o dia em que ele decidiu agir, ele me respondeu: “Foi numa quarta-feira, mas isso não quer dizer nada!”
Todas as manhãs, o Saulo chegava bem cedo, antes da secretária, guardava o carro, voltava até o portão de entrada para apanhar a correspondência e, às vezes, as abria ali mesmo, no gramado em frente à casa. O Vinícius estava perfumado e com sua gravata preferida, e esperou ansiosamente enquanto o Saulo estacionava o carro. Acelerou o passo para que não perdesse a oportunidade.
“Olá, tudo bem?”
“Oi, tudo bem!”
“Você é o Dr. Saulo, não é?”, perguntou apontando para o letreiro do consultório.
“Sim, sou eu mesmo. Prazer.”, o Saulo estendeu a mão para cumprimentá-lo.
“Eu sou Vinícius, seu vizinho.”
“Eu sei, quer dizer, eu sempre o vejo por aqui. É a casa amarela, certo?”
“Isso.”
“Ok. Prazer em conhecê-lo, Vinícius.”
“O prazer é meu.”
O Vinícius me falou que ele nem acreditou quando, para impedir que a conversa acabasse ali, ele disse o que disse.
“Eu olho muito pra você!”
“Como!?”
“Eu quero dizer, eu sempre te vejo chegar e sair.”
O Saulo não disse nada.
“Sabe o que é? É que eu acho você um homem muito bonito e me sinto muito atraído por você. Eu sei que eu não te conheço, mas sabe quando você simplesmente confia nos seus instintos? Então, eu me interessei por você, mesmo assim, sem saber muito. Foi mais porque você é bonito mesmo, e está sempre tão bem vestido... Enfim, eu queria me apresentar, e bem... se você me der seu telefone eu posso te ligar e te convidar para sair. O que você acha?”
O Vinícius disse que quis se enfiar em um buraco depois de ter falado tão mal articuladamente o discurso que havia ensaiado com antecedência.
“Por que nós não fazemos o seguinte? O meu telefone é aquele que está no letreiro do consultório. Como você dever ter percebido, é aqui que eu passo a maior parte do meu dia. Mas também seria bom se você me desse o seu telefone, pra eu poder ligar pra você, acho melhor.”
“Ok.”
“Ok, então.”
O Saulo anotou o telefone do Vinícius na agenda do celular e entrou para o consultório.
O Vinícius ficou achando que tinha dado tudo errado e entendeu que aquela de “deixa que eu te ligo” era uma outra maneira de dizer “não liga pra mim”. Além disso, o Vinícius me disse que ficou pensando que, apesar da receptividade do Saulo, teve dúvidas se ele era mesmo gay, se estava levando aquilo na brincadeira, ou se só havia pedido o telefone dele porque não soube o que fazer quando foi pego de surpresa pelo vizinho maluco.
Na mesma quarta-feira, o Rômulo estreava em uma comédia da qual ele também era o diretor. O Vinícius pensou em desistir de seus planos depois do fiasco de sua conversa com o Saulo, mas como não tinha nada a perder, continuou firme no propósito. Depois da peça, esperou que os conhecidos e amigos da companhia cumprimentassem todo o elenco e, só então, se aproximou.
“Parabéns, o trabalho de vocês é impressionante!”
“Obrigado. Obrigado pela presença.” Era a resposta padrão do Rômulo para os anônimos.
“Eu nunca tinha visto você em uma comédia! Você foi ótimo!”
“Obrigado. Foi ótimo pra mim também fazer um papel diferente do que eu estou acostumado.”
“Rômulo, me perdoe a indiscrição, mas você tem namorada? Ou namorado?”
“Não.”, o Rômulo deixou transparecer seu embaraço.
“Eu pensei em convidar você para sair comigo qualquer dia desses, o que você acha?”
O Rômulo deu um sorriso, meio riso, um pouco sem graça, mas respondeu.
“Acho bom! Hoje eu vou sair para comemorar com o pessoal do grupo, mas amanhã, depois da peça, eu estou livre. É bom pra você?”
“É ótimo! É perfeito!”
“Até amanhã então!”
“Até amanhã! Meu nome é Vinícius.”
“Prazer, Vinícius!”
O que mais me intriga nessa história é que, quando o Vinícius a repete, ele utiliza exatamente as mesmas palavras para reproduzir os diálogos e descreve as cenas e os cenários do mesmo modo. Por exemplo, repete sempre o clichê “eu estava flutuando”, bem apropriado para descrever sua volta para casa. Mal conseguiu dormir de tanta agitação.
No dia seguinte, quinta-feira, após o espetáculo, o Vinícius e o Rômulo tomaram vinho rosé e conversaram no camarim, e, na coxia do teatro vazio, viveram sua primeira noite de amor; já era amor.
Na sexta-feira, dia seguinte, o Saulo bateu na porta da casa do Vinícius por volta das seis da tarde e, assim como o próprio Vinícius havia feito, venceu a timidez para confessar que também reparava no vizinho, e que o desejava, agora ainda mais. O Vinícius levou-o para o quarto, amou-o, também era merecedor, e dormiram até que o celular os acordasse, por volta da meia-noite, com a ligação do Rômulo
O que mais me fascina nessa história é a sorte, a falta de sorte, e a sorte ao mesmo tempo. Quando o Vinícius fantasiava suas transas e conquistas, nunca imaginava as coisas se complicando. Ele achava tão improvável a ideia de abordar e seduzir um homem por quem estava apaixonado, que não lhe passou pela cabeça o que faria se um deles correspondesse ao seu avanço, quanto mais dois deles. “Não foi uma estratégia, ou uma coisa que eu pensei muito claramente. Foi mais uma intuição.”
Pelo telefone, ele deu o endereço dele para o Rômulo, que em quinze minutos chegou à sua casa, surpreendendo-se ao ver que ele não estava sozinho.
Na sala, o Vinícius abriu o jogo.
“Primeiro de tudo eu quero falar que, até quarta-feira, eu vivia a mais monótona das vidas. Cada hora eu me apaixonava por um homem diferente, mesmo sem conhecê-lo, e gastava meu tempo fantasiando uma felicidade qualquer, ou uma foda bem sacana. Foi então que eu resolvi tomar uma atitude e tentar atrair os homens que realmente mexiam comigo. Você, Saulo, é um desses homens. E você, Rômulo, também. Na quarta-feira, eu decidi chamar o Saulo pra sair, mas entendi que ele não estava interessado. De noite, depois da peça, tentei minha sorte com o Rômulo, e deu certo. Eu não sabia que você iria aparecer aqui na minha casa. Nem que você iria me ligar bem na hora que ele estivesse aqui.”
Nem o Saulo, nem o Rômulo fizeram qualquer comentário, mas ficaram visivelmente hesitantes
“Eu não quero parecer egoísta, porque eu não sou, mas eu sonhei tanto com vocês dois, que não queria desistir agora. Nem de você, nem de você. Então eu tive essa ideia, de repente: e se eu namorasse os dois? Ou melhor: se nós três nos namorássemos? Eu sei que parece loucura, mas eu tenho certeza que vocês vão gostar um do outro, tenho certeza! Todo mundo sabe que ninguém tem tesão em um cara só, e às vezes essa pode ser uma maneira de termos uma relação mais legal, entendem? Com mais satisfação! Bem, isso também não é importante agora, o que eu queria dizer, o que eu quero mesmo é conhecer vocês melhor, e eu não quero abrir mão do que pode acontecer daqui pra frente.”
Não foi só isso que o Vinícius falou naquela noite, falou mais coisas, coisas para persuadi-los. O Rômulo e o Saulo também fizeram suas considerações. No domingo, almoçaram juntos, os três, e decidiram levar adiante a ideia do Vinícius.
O que eu mais gosto de contar sobre essa história é o que vem a partir de agora.
Oito meses depois de decidirem que iriam namorar a três, o Vinícius, o Rômulo e o Saulo mudaram-se para um apartamento de quatro quartos, com bastante espaço para abrigar a família toda. Fizeram uma espécie de open house, e os amigos ajudaram com presentes para decorar e aparelhar o novo lar. Houve quem achasse estranho no começo, mas os três se tornaram tão amigos e tão amantes que era muito natural que quisessem morar juntos. Só vendo os três juntos para entender.
O Vinícius me explicou, isso nem todo mundo sabe, que eles criaram um código bem simples para não se desentenderem quanto ao sexo. Na maioria das vezes, quando estavam os três juntos, transavam juntos, a não ser que alguém não estivesse afim, ou que alguém manifestasse a clara vontade de estar com apenas um dos parceiros. Para que chegassem nesse nível de entendimento foi necessário que fizessem um pacto anti-vaidade e anti-dor-de-cotovelo. Quando estavam a dois, havia duas maneiras de dizer ao que não estava presente que ele seria bem-vindo na transa quando chegasse: deixar a porta do quarto aberta, ou transar no quarto dele. Essa segunda opção era quase um imperativo, que todos se alegravam em corresponder. Caso a porta do quarto estivesse fechada, nada de se intrometer no que já estivesse rolando.
O que mais me acrescenta nessa história é que o Vinícius me explicava que, apesar das regras, a dinâmica tinha seus contratempos, mal-entendidos e situações inesperadas. Acontecia de alguém desistir da transa no meio, ou de pedir “por favor” pra não ficar de fora porque estava muito excitado, ou de fechar a porta do quarto alheio por causa do barulho, ou de transferir a responsabilidade para o outro namorado: “Espera o Saulo chegar, tô cansado hoje.” Contou-me também sobre as dificuldades de se discutir um relacionamento a três, sobre argumentar contra duas opiniões ao mesmo tempo, sobre como a sina de ser um e se sentir só é sempre a mesma coisa. O Vinícius sempre matava minha curiosidade de saber sobre como é ter o dobro de sogros, sobre as comemorações dos aniversários, sobre o sexo a três. Ele gostava de me explicar como funcionava esse casamento tão sólido, de como estar em três parecia mais equilibrado e óbvio, como é um banco de três pernas.
Eu, como convivi muitos anos com eles, mais com o Vinícius, passei a acreditar naquela formação: três para amar, três para transar, três para dividir as contas, três para os momentos de aflição, três para imaginar o futuro, três para tudo.
O que mais me embaraça nessa história é que ela não acaba no três. Há uns dois anos atrás, o Vinícius me contou que ele, o Rômulo e o Saulo se apaixonaram por mais um homem. O felizardo era o dono da livraria da qual eram clientes, Tiago, canceriano. O Tiago é um dos homens mais bonitos e desejáveis que eu já conheci. Começaram a chamá-lo para algumas transas, para algumas idas ao cinema, para conversar. Todos concordaram que deveriam fazer o convite e, desde então, o quarto quarto é ocupado pelo Tiago, que levou um bom tempo para se adaptar aos três homens a quem aprendeu a amar.
Naquele ano, o Vinícius vivia me contando histórias hilárias, e outras meio melindrosas, de como os três fizeram para incorporar mais um no relacionamento, porém, eu só conseguia ouvir a mesma mensagem. Apesar de todas as curvas da narrativa do Vinícius, eu só era capaz de pensar em como eram habilidosos, os quatro, para levar aquela experiência adiante com um saldo tão positivo, com tanta satisfação para todos. Eu pensava tanto sobre aquilo que, aos poucos, fui me apaixonando por ele, o Vinícius, mas também pelo Rômulo, pelo Saulo e pelo Tiago. Às vezes, eu ainda lamento por não haver um quinto quarto no apartamento.
Hoje meu horóscopo diz assim: “Leão: procure abrigo entre aqueles que você admira e não deixe de conversar com eles sobre os seus sentimentos mais íntimos. Evite ficar sozinho ou pensando sobre a solidão. Palavra-chave: adicionar. Para ser alguém melhor: coragem. Dia favorável: segunda-feira.”
O que mais me convida a essa história é que ela ainda não acabou.
Hoje é segunda-feira.
ARRANJO
O que mais me excita nessa história é o fato de ela ser real. Na minha cidade, Juiz de Fora, litoral de Minas Gerais, todos a conhecem, mas poucos sabem dos detalhes que eu agora vou contar. Esses pormenores me foram confidenciados pelo próprio Vinícius, meu colega de trabalho há mais de cinco anos.
O Vinícius era muito tímido, quer dizer, ainda é muito tímido. Até hoje ele se admira com a ousadia que lhe rendeu essa boa história. Pois o Vinícius era um apaixonado nato. Quer dizer, é um apaixonado nato. Ele estava sempre de olho em alguém, de prontidão para viver seu grande amor. Mas sua vontade de outro homem não saía nunca de suas fantasias, pois não se arriscava a trocar uma palavra sequer com os homens por quem se apaixonava.
O que mais me diverte nessa história é que a inércia solitária do Vinícius foi interrompida por uma dica de horóscopo lida em voz alta por uma outra colega de trabalho. Dizia: “Virgem: você é um ser único e, por isso mesmo, o único responsável por sua felicidade. Seja corajoso e transforme seus sonhos em realidade. Palavra-chave: estratégia. Para ser alguém melhor: intuição. Dia favorável: quarta-feira.”
O Vinícius andava apaixonado por dois homens. Um deles era o Rômulo, ator de uma companhia de teatro amador da cidade, alvo também da cobiça de outros tantos. O Rômulo era alto, forte, taurino, traços napolitanos, cara de troglodita, mas um dos mais sensíveis homens para entender a humanidade, habilidade que o transformou em um grande ator. Era também professor de filosofia na universidade, o que aumentava sua popularidade e seu fã-clube. O outro era o Saulo, que era quase seu vizinho, pois alugara a casa em frente à do Vinícius para transformá-la em seu consultório odontológico. Tinham em comum a circunspeção, pois sempre que se cruzavam trocavam apenas breves sorrisos e olhares cordiais. O Saulo era pequeno, moreno, geminiano, e tinha olhos pretos que adiantavam suas maneiras gentis. O Vinícius fala que não acredita, nem nunca acreditou em horóscopo, mas que achou que os conselhos da revista poderiam lhe ser úteis. Quando eu perguntei a ele o dia em que ele decidiu agir, ele me respondeu: “Foi numa quarta-feira, mas isso não quer dizer nada!”
Todas as manhãs, o Saulo chegava bem cedo, antes da secretária, guardava o carro, voltava até o portão de entrada para apanhar a correspondência e, às vezes, as abria ali mesmo, no gramado em frente à casa. O Vinícius estava perfumado e com sua gravata preferida, e esperou ansiosamente enquanto o Saulo estacionava o carro. Acelerou o passo para que não perdesse a oportunidade.
“Olá, tudo bem?”
“Oi, tudo bem!”
“Você é o Dr. Saulo, não é?”, perguntou apontando para o letreiro do consultório.
“Sim, sou eu mesmo. Prazer.”, o Saulo estendeu a mão para cumprimentá-lo.
“Eu sou Vinícius, seu vizinho.”
“Eu sei, quer dizer, eu sempre o vejo por aqui. É a casa amarela, certo?”
“Isso.”
“Ok. Prazer em conhecê-lo, Vinícius.”
“O prazer é meu.”
O Vinícius me falou que ele nem acreditou quando, para impedir que a conversa acabasse ali, ele disse o que disse.
“Eu olho muito pra você!”
“Como!?”
“Eu quero dizer, eu sempre te vejo chegar e sair.”
O Saulo não disse nada.
“Sabe o que é? É que eu acho você um homem muito bonito e me sinto muito atraído por você. Eu sei que eu não te conheço, mas sabe quando você simplesmente confia nos seus instintos? Então, eu me interessei por você, mesmo assim, sem saber muito. Foi mais porque você é bonito mesmo, e está sempre tão bem vestido... Enfim, eu queria me apresentar, e bem... se você me der seu telefone eu posso te ligar e te convidar para sair. O que você acha?”
O Vinícius disse que quis se enfiar em um buraco depois de ter falado tão mal articuladamente o discurso que havia ensaiado com antecedência.
“Por que nós não fazemos o seguinte? O meu telefone é aquele que está no letreiro do consultório. Como você dever ter percebido, é aqui que eu passo a maior parte do meu dia. Mas também seria bom se você me desse o seu telefone, pra eu poder ligar pra você, acho melhor.”
“Ok.”
“Ok, então.”
O Saulo anotou o telefone do Vinícius na agenda do celular e entrou para o consultório.
O Vinícius ficou achando que tinha dado tudo errado e entendeu que aquela de “deixa que eu te ligo” era uma outra maneira de dizer “não liga pra mim”. Além disso, o Vinícius me disse que ficou pensando que, apesar da receptividade do Saulo, teve dúvidas se ele era mesmo gay, se estava levando aquilo na brincadeira, ou se só havia pedido o telefone dele porque não soube o que fazer quando foi pego de surpresa pelo vizinho maluco.
Na mesma quarta-feira, o Rômulo estreava em uma comédia da qual ele também era o diretor. O Vinícius pensou em desistir de seus planos depois do fiasco de sua conversa com o Saulo, mas como não tinha nada a perder, continuou firme no propósito. Depois da peça, esperou que os conhecidos e amigos da companhia cumprimentassem todo o elenco e, só então, se aproximou.
“Parabéns, o trabalho de vocês é impressionante!”
“Obrigado. Obrigado pela presença.” Era a resposta padrão do Rômulo para os anônimos.
“Eu nunca tinha visto você em uma comédia! Você foi ótimo!”
“Obrigado. Foi ótimo pra mim também fazer um papel diferente do que eu estou acostumado.”
“Rômulo, me perdoe a indiscrição, mas você tem namorada? Ou namorado?”
“Não.”, o Rômulo deixou transparecer seu embaraço.
“Eu pensei em convidar você para sair comigo qualquer dia desses, o que você acha?”
O Rômulo deu um sorriso, meio riso, um pouco sem graça, mas respondeu.
“Acho bom! Hoje eu vou sair para comemorar com o pessoal do grupo, mas amanhã, depois da peça, eu estou livre. É bom pra você?”
“É ótimo! É perfeito!”
“Até amanhã então!”
“Até amanhã! Meu nome é Vinícius.”
“Prazer, Vinícius!”
O que mais me intriga nessa história é que, quando o Vinícius a repete, ele utiliza exatamente as mesmas palavras para reproduzir os diálogos e descreve as cenas e os cenários do mesmo modo. Por exemplo, repete sempre o clichê “eu estava flutuando”, bem apropriado para descrever sua volta para casa. Mal conseguiu dormir de tanta agitação.
No dia seguinte, quinta-feira, após o espetáculo, o Vinícius e o Rômulo tomaram vinho rosé e conversaram no camarim, e, na coxia do teatro vazio, viveram sua primeira noite de amor; já era amor.
Na sexta-feira, dia seguinte, o Saulo bateu na porta da casa do Vinícius por volta das seis da tarde e, assim como o próprio Vinícius havia feito, venceu a timidez para confessar que também reparava no vizinho, e que o desejava, agora ainda mais. O Vinícius levou-o para o quarto, amou-o, também era merecedor, e dormiram até que o celular os acordasse, por volta da meia-noite, com a ligação do Rômulo
O que mais me fascina nessa história é a sorte, a falta de sorte, e a sorte ao mesmo tempo. Quando o Vinícius fantasiava suas transas e conquistas, nunca imaginava as coisas se complicando. Ele achava tão improvável a ideia de abordar e seduzir um homem por quem estava apaixonado, que não lhe passou pela cabeça o que faria se um deles correspondesse ao seu avanço, quanto mais dois deles. “Não foi uma estratégia, ou uma coisa que eu pensei muito claramente. Foi mais uma intuição.”
Pelo telefone, ele deu o endereço dele para o Rômulo, que em quinze minutos chegou à sua casa, surpreendendo-se ao ver que ele não estava sozinho.
Na sala, o Vinícius abriu o jogo.
“Primeiro de tudo eu quero falar que, até quarta-feira, eu vivia a mais monótona das vidas. Cada hora eu me apaixonava por um homem diferente, mesmo sem conhecê-lo, e gastava meu tempo fantasiando uma felicidade qualquer, ou uma foda bem sacana. Foi então que eu resolvi tomar uma atitude e tentar atrair os homens que realmente mexiam comigo. Você, Saulo, é um desses homens. E você, Rômulo, também. Na quarta-feira, eu decidi chamar o Saulo pra sair, mas entendi que ele não estava interessado. De noite, depois da peça, tentei minha sorte com o Rômulo, e deu certo. Eu não sabia que você iria aparecer aqui na minha casa. Nem que você iria me ligar bem na hora que ele estivesse aqui.”
Nem o Saulo, nem o Rômulo fizeram qualquer comentário, mas ficaram visivelmente hesitantes
“Eu não quero parecer egoísta, porque eu não sou, mas eu sonhei tanto com vocês dois, que não queria desistir agora. Nem de você, nem de você. Então eu tive essa ideia, de repente: e se eu namorasse os dois? Ou melhor: se nós três nos namorássemos? Eu sei que parece loucura, mas eu tenho certeza que vocês vão gostar um do outro, tenho certeza! Todo mundo sabe que ninguém tem tesão em um cara só, e às vezes essa pode ser uma maneira de termos uma relação mais legal, entendem? Com mais satisfação! Bem, isso também não é importante agora, o que eu queria dizer, o que eu quero mesmo é conhecer vocês melhor, e eu não quero abrir mão do que pode acontecer daqui pra frente.”
Não foi só isso que o Vinícius falou naquela noite, falou mais coisas, coisas para persuadi-los. O Rômulo e o Saulo também fizeram suas considerações. No domingo, almoçaram juntos, os três, e decidiram levar adiante a ideia do Vinícius.
O que eu mais gosto de contar sobre essa história é o que vem a partir de agora.
Oito meses depois de decidirem que iriam namorar a três, o Vinícius, o Rômulo e o Saulo mudaram-se para um apartamento de quatro quartos, com bastante espaço para abrigar a família toda. Fizeram uma espécie de open house, e os amigos ajudaram com presentes para decorar e aparelhar o novo lar. Houve quem achasse estranho no começo, mas os três se tornaram tão amigos e tão amantes que era muito natural que quisessem morar juntos. Só vendo os três juntos para entender.
O Vinícius me explicou, isso nem todo mundo sabe, que eles criaram um código bem simples para não se desentenderem quanto ao sexo. Na maioria das vezes, quando estavam os três juntos, transavam juntos, a não ser que alguém não estivesse afim, ou que alguém manifestasse a clara vontade de estar com apenas um dos parceiros. Para que chegassem nesse nível de entendimento foi necessário que fizessem um pacto anti-vaidade e anti-dor-de-cotovelo. Quando estavam a dois, havia duas maneiras de dizer ao que não estava presente que ele seria bem-vindo na transa quando chegasse: deixar a porta do quarto aberta, ou transar no quarto dele. Essa segunda opção era quase um imperativo, que todos se alegravam em corresponder. Caso a porta do quarto estivesse fechada, nada de se intrometer no que já estivesse rolando.
O que mais me acrescenta nessa história é que o Vinícius me explicava que, apesar das regras, a dinâmica tinha seus contratempos, mal-entendidos e situações inesperadas. Acontecia de alguém desistir da transa no meio, ou de pedir “por favor” pra não ficar de fora porque estava muito excitado, ou de fechar a porta do quarto alheio por causa do barulho, ou de transferir a responsabilidade para o outro namorado: “Espera o Saulo chegar, tô cansado hoje.” Contou-me também sobre as dificuldades de se discutir um relacionamento a três, sobre argumentar contra duas opiniões ao mesmo tempo, sobre como a sina de ser um e se sentir só é sempre a mesma coisa. O Vinícius sempre matava minha curiosidade de saber sobre como é ter o dobro de sogros, sobre as comemorações dos aniversários, sobre o sexo a três. Ele gostava de me explicar como funcionava esse casamento tão sólido, de como estar em três parecia mais equilibrado e óbvio, como é um banco de três pernas.
Eu, como convivi muitos anos com eles, mais com o Vinícius, passei a acreditar naquela formação: três para amar, três para transar, três para dividir as contas, três para os momentos de aflição, três para imaginar o futuro, três para tudo.
O que mais me embaraça nessa história é que ela não acaba no três. Há uns dois anos atrás, o Vinícius me contou que ele, o Rômulo e o Saulo se apaixonaram por mais um homem. O felizardo era o dono da livraria da qual eram clientes, Tiago, canceriano. O Tiago é um dos homens mais bonitos e desejáveis que eu já conheci. Começaram a chamá-lo para algumas transas, para algumas idas ao cinema, para conversar. Todos concordaram que deveriam fazer o convite e, desde então, o quarto quarto é ocupado pelo Tiago, que levou um bom tempo para se adaptar aos três homens a quem aprendeu a amar.
Naquele ano, o Vinícius vivia me contando histórias hilárias, e outras meio melindrosas, de como os três fizeram para incorporar mais um no relacionamento, porém, eu só conseguia ouvir a mesma mensagem. Apesar de todas as curvas da narrativa do Vinícius, eu só era capaz de pensar em como eram habilidosos, os quatro, para levar aquela experiência adiante com um saldo tão positivo, com tanta satisfação para todos. Eu pensava tanto sobre aquilo que, aos poucos, fui me apaixonando por ele, o Vinícius, mas também pelo Rômulo, pelo Saulo e pelo Tiago. Às vezes, eu ainda lamento por não haver um quinto quarto no apartamento.
Hoje meu horóscopo diz assim: “Leão: procure abrigo entre aqueles que você admira e não deixe de conversar com eles sobre os seus sentimentos mais íntimos. Evite ficar sozinho ou pensando sobre a solidão. Palavra-chave: adicionar. Para ser alguém melhor: coragem. Dia favorável: segunda-feira.”
O que mais me convida a essa história é que ela ainda não acabou.
Hoje é segunda-feira.
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