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NOVA JÉRSEI
O telefone insiste no vazio da casa. Ela caminha apressada, receosa de que a chamada se interrompa.
— Alô! — em seguida, apenas ouve e assente com a cabeça como se pudesse ser vista do outro lado da linha. — Às seis... okay. — E desliga.
Ela sai pela porta dos fundos e fita o enorme galpão destoante da paisagem suburbana de Nova Jérsei. Lembra-se, por um instante, da resistência dos vizinhos quando estava sendo construído, mas a concórdia seria comprada pela história de Daniel F. Wood. Ela cruza os braços, com uma das mãos ao pescoço para evitar o vento, deveria ter colocado o cachecol, ela pensa.
O calor do galpão tem cheiro de cloro, que é o mesmo cheiro do filho, que nada em uma piscina longa e estreita, sob a claridade fluorescente das dezenas de luzes que pendem da estrutura de metal. Ela se assenta em uma cadeira de plástico e observa a organização dos pertences do filho: óculos, mochila, toalhas, toucas, chinelos. Todos levam seu nome, Dan Wood, grafados no mesmo tipo, logo abaixo da logomarca do patrocinador.
— Dan! Dan, meu filho! — ela chama à beira da piscina de duas raias.
Dan ergue a cabeça e interrompe a natação. Tira os óculos e a touca e encara a mãe.
— Você pode completar as séries. O Phill vai se atrasar.
Dan volta a nadar. Ela hesita, não sabe se fica por ali ou se volta para a casa. Se ao menos eu tivesse trazido o livro. Decide voltar. Em casa, checa o smoking que o filho irá usar mais à noite. Pensa que mesmo satisfeita com a independência alcançada por Dan, conquista de esforço que lhe custara dinheiro e sofrimento, o filho de 26 anos ainda precisa de ajuda para se vestir com elegância. Desce à cozinha, vou preparar alguma coisa, gosta de cozinhar para o filho, mas desiste, não gosto de mexer nos utensílios de Phill.
A ligação que recebera há pouco era dele. Iria se atrasar. Mais cedo, os três à mesa do café, Phill pedira à Rachel que convencesse o filho a sair mais cedo da piscina, pois iriam a Nova Iorque para o vernissage de seu antigo parceiro, mas com o atraso no trabalho não precisaria bagunçar a rotina de Dan. Rachel tinha dúvidas quanto às intenções de Phill ao levar o filho ao vernissage, mas para que discutir, meu menino nunca sorriu tanto quanto depois de viver com Phill.
A história de Dan Wood é conhecida por todo o país, em muitas versões, e mais recentemente, mundo afora. Diagnosticado como autista, ainda em Idaho, viveu uma infância atípica para sua deficiência. Frequentou a escola até o Junior High, quando começou a nadar. Aos 18 anos, competia profissionalmente e participou de duas olimpíadas, cinco medalhas de ouro e uma de bronze, all american, contratos publicitários, fascínio da mídia. Nenhuma entrevista. Dan não fala. Há dois anos, desde que se recusara a competir, vive com o estilista Phillip Green, episódio explorado em diversos ângulos pelos formadores de opinião mais proeminentes da supernação, ainda pouco preparados para a relação homossexual entre o campeão olímpico retardado e a célebre figura da milionária indústria da moda.
Às cinco, Dan para de nadar, às cinco e vinte e cinco vê seu homem preferido entrar junto com ele no box para um banho rápido. Dan quer transar, mas Phill explica que estão muito atrasados. Às seis, espera Phill acabar de se arrumar para ser ajudado. Às seis e vinte e cinco, feliz com os cabelos pretos brilhosos de gel, despede-se da mãe e entra no Lexus com Phill ao volante. Às seis e cinquenta, estão no Lincoln Tunnel e, finalmente, às sete e trinta, entram juntos, mãos dadas, Phillip faz questão, pelo hall da galeria de arte. Em questão de segundos, roubam as atenções, que logo vão se dispersar entre o público que se esforça para preservar alguma fineza de comportamento.
Nathan, antigo parceiro de Phill, expositor da noite, vem recebê-los. Desde que se separaram Phill e Nathan mantêm-se distantes, final traumático, muitas vaidades arrazoadas, embora haja em secredo o desejo de reaproximação. Nathan não sabe como cumprimentar Dan, o que dá alguma satisfação a Phill. Depois de algumas formalidades o anfitrião deixa o casal.
Por entre as telas e as conversas de Phill, Dan permanece de mãos dadas ao homem que ama, atraindo os olhares dos que não têm nomes tão poderosos quanto os deles. Se fosse desconhecido, em seu silêncio, Dan passaria por um homem normal. Mas todos sabem.
No lounge iluminado de vermelho, Phill admira a beleza branca de Dan tomar um leve rosado e acaricia-lhe a pele. Dan afasta sua mão com medo de ter despenteado seus cabelos. Em seguida, Nathan senta-se próximo, traz na mão duas taças de espumante amarelado, uma para Dan, uma para o homem a quem quer afetar.
— O que você achou?
— A melhor. Sem palavras.
— Mesmo?
— Eu havia me esquecido desse seu poder, de entrar na minha alma, na alma das pessoas. Eu queria que todos tivessem a chance de tê-lo, como eu tive.
— Por que você está dizendo isso? — Nathan não recebeu o elogio.
— Só estou dizendo... é no que eu acredito.
— No que você acredita? Eu tinha me esquecido que você é cheio de crenças, Phill...
— Desculpa, Nathan, eu não queria que a conversa fosse...
— Sabe, Phill, de todas as crenças que você formula com tanta facilidade, a que eu tenho certeza de que você mais goza é a de se achar superior a todos os outros!
Phill nada diz.
— Você se acha realmente melhor do que eu?
— Nathan, eu queria que depois de tudo que nós vivemos juntos...
— Responde o que eu perguntei: você se acha realmente melhor do que eu?
— Nathan, se eu não o conhecesse bem, diria que você se importa com isso... Mas eu sei bem que você está tentando fazer uma cena pública, um episódio, um acontecimento para sua grande noite! — Phill tem o rosto frio, distante. — Por que você não guarda suas catarses para suas telas?
— Por que você não pega o seu namoradinho debiloide e sai daqui?
— Elegante, como sempre, Nathan...
Phill levanta-se acompanhado por Dan. Este sorri para Nathan, certamente sem a noção do estrago que seu semblante sincero faz no artista.
— Você adora o mongolzinho, não é? — Phill faz menção de se retirar, mas eu vou dizer umas verdades a ele, filho da puta! e fica para ouvir o que Nathan tem a dizer. — Quem não gostaria? Quantos anos ele tem? Vinte? Vinte e cinco? Gostoso que só ele, você sempre quis um atleta na sua cama, não é verdade, Phill? E que beleza, é retardado! Ele faz tudo que você manda? Fode direitinho? Ou ele é desses loucos violentos? Ah! eu adoraria ver você implorando para ele parar de te arregaçar, Phill! Já sei, melhor, ele tem alguma habilidade matemática! Além de brinquedo sexual ele é o seu novo contador? Seu Rain Man particular?
Phill desiste de revidar. Certifica-se do pior, todos o observam.
— Exatamente, Phill! É hora de você ir embora com seu trofeuzinho! A quem você acha que engana com essa relação patética? Você não tem nem ao menos a curiosidade de ligar a televisão para entender o quão bizarra soa essa sua brincadeira? Por que você não trouxe o menino com as medalhas no peito? Demais pra você?
Apesar de tanta firmeza no falar, o próprio Nathan parece incomodado como o interrogatório retórico ao qual submete o homem que o faz ferver. Dan, Dan Wood, o campeão olímpico, parece alheio aos insultos que lhe são feitos. Com um gesto largo, bebe todo o espumante em sua taça e dá a entender, pelo menos a Phillip, que ficaria grato se pudesse tomar também o do parceiro. Phill passa a ele sua taça e o espumante some para dentro de Dan. O sorriso de Nathan ao acompanhar a cena dispensa o deboche que estava preste a vir à tona. Phill faz o gesto de quem se prepara para avançar, enche o peito, estica os joelhos, mas não vale a pena, vai ser pior para mim e para o Dan, sente um desconforto quente na garganta, ânsia de vômito. Puxa Dan pela mão e vão embora, às nove e cinco.
Dirigindo de volta a Nova Jérsei pensa nos comentários que viriam; impossível que vivesse nesse tempo em que há tanta história para ser contada e que ele estivesse nelas de maneira que não lhe agradava. Cumprimenta Rachel. Os três tomam a sopa que ela preparou. Phill vomita mais tarde, não deveria ter comido, tinha certeza.
Quando despe Dan, recusa o pedido de sexo do delicioso e excitado rapaz em suas mãos, e prepara-se para dormir, e não gosta de ser o homem que é. Sonha vergonhas terríveis e acorda várias vezes, e sente-se mal por sentir vergonha, preferia sentir medo, e sente mais vergonha. Pela manhã acorda Dan e logo acorda Phill, que admira a beleza do homem incompleto a quem ele escolheu para ser o seu troféu. Seu autista, agora é seu, não é de mais ninguém, tem mesmo aquela habilidade que gera os comentários: ele é retardado mas dizem que consegue, ele não fala mas dizem que é capaz de, ele é deficiente mas é um dos maiores atletas do mundo.
Dan olha dentro dos olhos de Phill. Dentro, como quem entende todas as elucubrações da mente sadia e arredia de um homem como Phill. E pede carícias, e cede seu corpo, e não perde a chance de voltar a olhar nos olhos do homem que o coleciona. Poucos conseguiriam resistir aos olhares lancinantes de Dan. E ele força sua entrada e o seu prazer, sua vitalidade, é um atleta olímpico! que bem isso lhe faz.
Depois, à mesa, Phill e Rachel preparam um robusto café da manhã, Dan nada oito horas todos os dias, mesmo sem competir, precisa se alimentar bem. Phill, é sexta-feira mas ele não vai trabalhar, fica no galpão, lendo algumas revistas antigas, moda, tendências. De vez em quando, o barulho da água chama o olhar e ele se lembra de Dan. Ninguém sabe, só ele, mas Dan sempre goza junto, sua proeza. Quando transam, a qualquer hora, em qualquer lugar, a circunstância não importa, gozam juntos. Dan lê sua mente e faz seu gozo sincronizar com o do homem que o venera. Será?
Phill despe-se e salta para a água, aquecida. O cheiro de cloro o excita. Dan logo nada em sua direção. Dá certo, Phill celebra, e sente um desejo inusitado de fazer coisas que considera certas.
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