FERIDO

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FERIDO
         

Dean Caldwell demorou a perceber que estava vivo. Antes de ligar os sentidos, ligou a memória e lembrou-se do ataque, do erro, dos ferimentos. Perto, ouviu passos, uma conversa indistinguível, e outros barulhos. O cheiro era familiar, embora pouco o apreciasse, cheiro de enfermaria. Estava aconchegado com cobertores e um travesseiro com perfume de lavanda. Passou-lhe pela cabeça se ainda estava com o corpo inteiro, susto remanescente das histórias sobre os soldados que acordavam despedaçados, infelizes por terem sobrevivido. “Quem terá sobrevivido?”, fez-se a pergunta. Engoliu duro, a garganta estava ressecada, dolorida, e ele ponderou se estava com amidalite (sua amidalite, tinha feito as conexões, sempre coincidia com o romper das aflições mais antigas). “Preciso de água”.
         
Abriu e fechou os olhos. Havia muita luz. Não se esforçou em abri-los novamente. Ainda estava com sono e fazia tanto tempo que não dormia, ou dormia entrecortado por sonos ruins ou por alertas — verdadeiros e falsos. “Vou dormir”, decidiu, mesmo ciente de que nem sequer sabia se suas pernas estavam lá, ou se viveria apenas mais um dia, se precisaria de preciosos minutos para enviar mensagens à família. Dormiu.
         
Quando acordou desta vez, abriu imediatamente os olhos pois sentira alguém ao seu lado. Silenciosamente, um dos enfermeiros trocava, com alguma dificuldade, o soro soerguido sobre a cabeceira de sua cama. “Vou pedir água”.
         
Hi! 
Hello!
I’m thirsty! 
— “Durstee?

Dean percebeu que o homem não falava inglês, o que lhe pareceu óbvio. “Como se fala água, em francês?” tentou se lembrar... “eau!”

Eau? 
Eau! — o jovem enfermeiro sorriu, confirmando que entendera a mensagem.

Pouco depois, voltou trazendo a água. Acompanhava-o um outro, que passou a examinar Dean. Em inglês, o médico lhe explicou a gravidade de suas lesões e felicitou-o por sua sorte — ou fé — pois sararia, com o tempo, de todos os ferimentos que sofrera: cinco projéteis haviam sido retirados, três deles no joelho, fora operado às pressas. Outro quase lhe destruíra o fígado, outra operação. O médico ainda lhe adiantou que era incerto se precisaria retornar à sala de cirurgia: a queimadura no braço esquerdo era uma incógnita, pois cicatrizava bem, mas alguns pontos poderiam precisar de um enxerto.

Os dias que se seguiram foram adidos de notícias terríveis, sobretudo de perdas. Dean escrevera para a família, queria dizer que sobrevivera. E agora as dores se faziam sentir, um pouco de sofrimento, longe de todos.

Vincent? (dizendo VINcent, em inglês)
Vincent... (respondendo Vã-sã, em francês).

Dean tinha frequentado aulas de francês na escola, mas lembrava pouco, o que não era de todo importante, pois não tinha muita vontade de conversar. Mas todos os dias, muitas vezes, esforçava-se para demonstrar a gratidão que era devida ao enfermeiro que lhe cuidava.

Merci, Vincent. Merci Beaucoup! 

Vincent era tão lacônico quanto Dean — o horror da guerra deixa essa mesma marca em muitos — o que não quer dizer que não se entendiam bem. Além de Dean, Vincent cuidava de mais oito acamados, alguns em estado melhor, outros, futuro curto. E o que Dean se lembra era de parecer sempre o único. “Talvez os outros se sentissem tão especiais quanto eu...”

Todos os dias, pela manhã, Vincent, que devia ter os mesmos dezenove anos de Dean, ia, cama a cama, tratar dos feridos da guerra que começara nos primórdios do tempo — nunca cessará. Não era enfermeiro, qualquer um poderia notar, mas tinha mão sensível para o ofício. Antes de tocar em Dean, repetia, sotaque apertado de língua presa.

Din Calduél. 

“Que delicadeza!”. Primeiro olhava o soro. Acenava com a cabeça para Dean. Descobria seu corpo, o calor vazava e o frio entrava, os pêlos se arrepiavam. Mostrava a “comadre” e o “periquito” para saber se Dean precisava fazer suas necessidades básicas. Ele sempre respondia que sim, e apontava o “periquito”. Vincent descia-lhe o short e acenava com a cabeça. “Mãos quentes”, e ajeitava o pênis de Dean. Esperava. Acenava com a cabeça. Dean lhe dava o sinal quando acabava, sua urina cheirava mal como nunca. Esse ritual se repetia mais vezes durante a jornada, a aflição da uretra, e Dean chamava:

Vincent! Si vous-plaît? 

Trocava os curativos do joelho, tirava faixa, tirava gaze, limpava as feridas. Acenava com a cabeça. No começo, Dean não compreendia que tanto o francesinho acenava para ele, depois descobriu. Um dia, um único dia, Vincent não estava, e outro enfermeiro lhe cuidou, sem acenos de cabeça. Dean sentiu-se humilhado. O respeito do jovem Vincent, pelos corpos sobretudo, inspirou algumas admirações em Dean. Para os cuidados de higiene do braço queimado sobravam acenos de cabeça e olhares de firmeza. Nas primeiras vezes, Dean gritava, chorava. Aos poucos, foi aprendendo a dor, e Vincent aprendendo a dor do outro.

Com um pano úmido, frio, Vincent limpava o corpo de Dean Caldwell: pés, pernas, virilhas, púbis, torso, braços, pescoço. Acenava com a cabeça e alavancava o corpo, primeiro para a direita e depois para a esquerda, para limpar-lhe as costas. Pegava outro pano, limpava as mãos, o rosto e as orelhas de Dean e depois lhe oferecia o pano. Dean recusava.

Ces’t bien! 

Sua intenção era mostrar que estava satisfeito com o carinho, mais do que com a limpeza. Alguns pacientes aceitavam o pano e se limpavam de novo, “como se fosse adiantar alguma coisa”. Tinha o dia de trocar o lençol, o dia de trocar as roupas, o de limpar os cabelos, o dia de cortar as unhas. Cada ação era um ritual metódico, fazer as refeições, escovar os dentes, defecar. Com o tempo foi ficando mais fácil para Vincent, Dean o ajudava, estava se recuperando a contento. Vincent acenava com a cabeça quando Dean se virava para que ele limpasse seu dorso.

Dean sabia que muitos, mesmo acamados, ou por esse mesmo estado, masturbavam-se. Vincent os limpava também de seus prazeres. Mas Dean se recusava a fazê-lo, ainda que tivesse condições e ânimos. Não queria submeter Vincent àquela assepsia. Um dia sonhou com o próprio Vincent, suas mãos quentes massageando-lhe o pênis. Acordou excitado. “Ainda bem que não gozei!”.

Recebeu a carta de que voltaria para a Irlanda, embora nem conseguisse ficar de pé. Sentiu o cheiro de sua casa, os pais, as irmãs. Tinha dois collies de pêlo ferrugem. Ainda havia guerra, “não importa”.

Abraçou Vincent no dia em que foi embora e falou o francês mais eloquente de toda sua vida.

Merci, Vincent! Merci! 

Vincent esforçou-se para dar-lhe recomendações em inglês.

Sessenta anos depois, Vincent ainda era sua lembrança mais clara da guerra. Viveu com reminiscências de ordens, tiros, fomes, assassinatos, todavia, até estas foram se enfraquecendo, driblando a memória. No entanto lembrava-se do francesinho quando ia à igreja de St. Vincent, quando o sobrinho vinha (chamava-se Vincent, sugestão do tio), quando lia alguma palavra em francês ou quando alguém lhe perguntava das cicatrizes. Todos os feridos, em hospitais ou na televisão, lhe resgatavam o jovem enfermeiro com incrível nitidez. E, ainda que ele mesmo não se desse conta, herdara dos dias de ferido de guerra o menear de cabeça.

Via a desgraça do mundo e acenava em resposta; havia pouco a ser dito, muito a ser feito.







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