AMOR

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AMOR 


João fartou-se e logo tratou de voltar à geladeira aquilo que ele havia colocado para fora. Depois de guardado tudo, pensou em Haruo. Às quintas-feiras o parceiro chegava exausto, pois sempre participava de mais de uma cirurgia. Retirou de novo o peito de peru, a rúcula, o tomate, o creamcheese e a mostarda doce, e preparou dois sanduíches para Haruo. Ajeitou-os em um prato. Conferiu se ainda havia suco na caixinha. Anotou no quadro de recados afixado na porta do congelador: “sanduíches prontos Beijo”. Escovou os dentes, vestiu calças pretas, cinto novo, e uma camisa social que Haruo ganhara de uma paciente, mas da qual não havia gostado; achava que parecia roupa de palhaço, toda listrada de vermelho e branco. João parou em frente ao espelho no final do corredor e achou-se bonito. Ajeitou mais uma vez os cabelos ainda molhados de gel. Dobrou os punhos da manga para descontrair o visual; deu certo; gostava de mostrar os antebraços, que eram fortes. Estava perfumado, João andava sempre perfumado. Calçaria os sapatos na saída, não se usava sapato dentro da casa de Haruo e de João, tradição japonesa.

Pronto para sair de casa, ouviu Haruo chegar. Foi ao seu encontro. 

Haruo entrara encharcado pela porta da frente. Chovia lá fora. 

— O que aconteceu? Você está sem carro? — João logo percebeu, pois Haruo usava habitualmente a porta da garagem. 
— Fiquei. Acabou a bateria. Preciso que você me leve lá no hospital pra fazermos uma chupeta. 
— Agora!? 

Só então Haruo percebeu que João estava vestido para um compromisso. 

— Aonde você vai desse jeito? 
— Eu vou ao aniversário do Douglas! 
— Que Douglas? — Haruo não fazia a mínima ideia de quem era o sujeito. 
— O Douglas do curso de entalhe! 
— E você vai ao aniversário dele? — havia, já, um julgamento negativo na pergunta de Haruo. 
— Vou. 
— Você vai ao aniversário de um cara que você conheceu há menos de um mês no curso de entalhe de madeira? 
— Vou. E o curso começou há quatros meses. 
— Você vai sozinho? 
— Vou. 

A cada resposta, João gostaria de ter acrescentado: “algum problema?”, mas viu que Haruo estava cansado e mal humorado, e deixou de lado. 

— Então tá. Mas antes você vai ter que ir comigo lá no hospital. 
— Haruo! 
— O quê? — fingindo não compreender a exclamação de João. 
— Eu tô saindo! Não dá pra eu ir parar lá no hospital agora! 
— Por que não? Que horas é o aniversário? 

João não responderia essa pergunta. Sabia que Haruo forjaria o que ele próprio julgava ser uma solução, fazendo tudo se resolver do seu jeito, sem se preocupar com o incômodo que causaria. Ele tinha a perfeita noção de quando agia inoportunamente, mas fazia sempre questão de fazer suas propostas parecerem óbvias e justificáveis. Mas João pensou “não dessa vez!” 

— É agora. 
— Agora? E você não pode chegar um pouco atrasado? Ou vai ter alguém na porta registrando a presença pontual dos convidados? Nem é muito esperto chegar cedo em uma festa onde você não conhece ninguém!
— Como “não conheço ninguém”? 
— E conhece? — Haruo retomou o deboche, sem esconder a irritação. — Quem? A “galera” do curso de entalhe? 
— É. A “galera” do curso de entalhe! — João viu sua própria paciência começar a se esgotar; a provocação foi aceita. 
— Custa você ir até o hospital comigo? Não vai levar nem meia hora! 
— É claro que vai levar meia hora, né, Haruo! Mais de meia hora até! Ainda mais com essa chuva e a essa hora! E quem vai fazer a chupeta? Você? Não vai, vai? Então vai sobrar pra mim! 
— Você tá preocupado em sujar sua roupa? — mais provocação. 
— Ah, Haruo, pode parar! Não vou cair na sua pilha não! Amanhã eu te levo no hospital de manhã e a gente resolve isso! Você nem precisa do carro hoje à noite, precisa? — antes de completar a pergunta, João viu que encurralara Haruo — Então pronto! Amanhã nós vamos lá! 

João sentou-se junto à porta, em um pequeno banco de madeira feito por ele mesmo, para calçar os sapatos.

— Você quando está de má vontade é dose! — Haruo não desistira da discussão. 
— Má vontade, Haruo!? Má vontade!? É você que não suporta ser contrariado! Não está vendo que não é isso? 
— Além do mais, você nem precisa ir nessa festa! 
— É claro que não preciso! Mas eu quero! E eu vou! 
— Então vai! Ninguém está te impedindo! E mesmo que eu tentasse, você só faz o que você quer mesmo!
— Puta que pariu, cara! Você quando decide ser chato, você se supera! Já conseguiu estragar minha noite antes de ela começar! 
— Ah, desculpa! Você me desculpa? — agora o deboche tomava contornos cômicos — Você me perdoa por ter estragado sua noite alegre com a turminha da marcenaria? 
— Muito maduro da sua parte, Haruo! Parece um menino mimado! Você e uma criança mimada são mera coincidência! Quando não consegue o que quer, faz pirraça!

Haruo trocou o ar de troça por um outro; havia raiva. 

— Mas é o menino mimado que sustenta essa casa! Então eu acho que ele tem o direito de fazer pirraça quando ele quiser!
— Ah, vai se foder, Haruo! 

Essa machucou João. Esse entendimento de Haruo já havia escapado em outras conversas, mas nunca assim, nesse tom. 

— Ah... agora quem é o menino pirracento? 

João sentiu-se acuado. Sentiu-se assim porque o golpe, o golpe de Haruo o magoara. 

— Eu nem acredito que você está falando isso comigo, Haruo... 
— Não acredita por quê? — Haruo insistia no conflito, mesmo ao ver que João começara a falar de outro lugar, um mais delicado. — Ou não é verdade? Não sou eu que mantenho essa casa? 
— E que prazer te dá jogar isso na minha cara, não é? Essa estava guardada, não estava? Agora me diz o que você acha que você ganha com isso, cara! O que você quer que eu diga agora? Obrigado? 
— Seria um começo! Melhor ainda seria se você não fizesse tanto drama pra me dar uma carona! Uma carona com o carro que eu comprei! Lembra? Eu comprei! 
— Então é isso? É dinheiro o problema? Então muito obrigado! — João jogou a chave do carro no peito de Haruo. — Eu vou de táxi! Não preciso do precioso carro que você comprou! 
— Não precisa não, é? E vai fazer como? Vai ficar sem o carro amanhã também? E depois de amanhã? Vai viver sem carro? 
— Eu posso comprar um carro com meu próprio dinheiro! Você não é o único que trabalha nessa casa!

Haruo deu uma gargalhada forçada, teatral, um personagem: vilão. 

— Você chama isso de trabalho? Fazer banquinho de madeira? Mesinha de centro? Consertar cadeira? Se você levasse isso a sério, você tinha um negócio! Vendia, ganhava dinheiro! Mas não é brincando de marceneiro na garagem que você vai conseguir alguma coisa! Ou você acha que vai comprar um carro depois que terminar o seu curso de entalhe? Não! Não vai! Você vai usar o que eu te dei! Assim com está usando minha camisa! Minha casa! Então não banca o bonzão não, porque tudo isso fui eu que te dei! Eu! 
— Você acha mesmo que você me deu tudo que eu tenho? Tudo? De que sem você eu estaria perdido? Um pobre coitado, mendigando nas ruas? 
— É uma possibilidade. Afinal de contas você nunca foi muito inclinado pro trabalho, foi? Quando foi que um projeto seu foi pra frente? E por favor, não me venha falar que esses banquinhos são um plano de carreira porque aí já é abusar da minha inteligência! 
— É claro que meu trabalho não vale nada, não é, Haruo? Que trabalho nesse mundo pode competir com o nobre ofício do grande cirurgião plástico que trabalha em dois hospitais e mais um consultório particular? Nem o presidente deve ter uma função tão importante! Aposto que o seu trabalho é também o mais difícil e o mais cansativo da face da terra! 
— Talvez seja! Mas você nunca vai entender, porque enquanto eu estou ralando o dia inteiro, você fica aqui, vendo televisão, vai da academia pro clube, do clube para academia! Seu conceito de cansaço é fazer uma série de supino a mais! Pra ficar gostoso você tem tempo, não é? Tem ânimo pra dar e vender! 
— Então o problema é o que eu faço com meu tempo livre? 
— O problema, que você claramente não vê, é que você tem muito mais tempo livre do que deveria! Aí acaba pensando que jogar tênis e malhar são compromissos de verdade! 
— Você quer que eu pare de malhar então? 
— Eu? Eu não quero nada! Malha o quanto você quiser! Eu, se fosse você, também iria me desdobrar em dois para manter esse corpo bem sarado! — não era um elogio. 
— O que você que tá querendo dizer? 
— Tô querendo dizer que eu acho ótimo que você tenha pelo menos um objetivo na vida! Ainda que sua meta seja um abdômen rasgado! 
— Então você acha que ser sarado é minha grande conquista? Minha única conquista? Que é a coisa mais importante da minha vida? 
— E não é? 
— Deixa de ser ridículo, Haruo! Você tá falando merda só porque não tem o que falar! 
— Então vai me dizer que você não é obcecado com seu corpo! 
— Posso até ser! E daí? O que isso tem a ver? Eu gosto do meu corpo sim! Ou agora eu tenho que ter vergonha do meu corpo? Ou é crime eu querer ser gostoso? 
— Claro que não! Eu te apoio totalmente nesse projeto! Vou até te pedir um favor: depois você me lembra de comprar uma sunga nova pra você, pra você desfilar em volta da piscina, bem devagarzinho. Patético! “Olhem meu peitoral, olhem minhas coxas enormes, olhem meu tanquinho!” — Haruo esboçou uma imitação, mas não foi adiante. 
— Agora eu entendi! É despeito! É o espírito de menino magrelo que ainda não saiu de você! 
— Por quê? Você acha que eu tenho inveja de você? Você acha que eu, eu, me submeteria ao papel que você se submete, de ficar exibindo a bunda como se fosse um troféu? O mais triste é que você pensa que estão todos babando por você, que é impossível resistir aos seus encantos, não é mesmo? 
— Funcionou com você! Você pode ficar aí fazendo o discurso que você quiser, mas no dia que me conheceu não conseguia tirar o olho de mim! E agora fica dando uma de guru da beleza interior! 
— Vai ver você tem razão! Ninguém pode falar que seu investimento em tantas horas puxando ferro foram inúteis! Acabou fisgando um médico otário pra bancar sua academia! Eu: o otário aqui! 

Desse ponto em diante, já não cabiam mais para João acusações alteradas ou perguntas retóricas. Assumiu voz sincera. 

— Eu não acredito, Haruo, que depois de tanto tempo vivendo juntos, você está pintando esse quadro. Então é assim que você vê as coisas? Eu sou o bonitão sarado que, sem capacidade de sobreviver às próprias custas, arranjou um doutor benevolente para sustentá-lo? Você acha que é esse seu lugar na minha vida? 
— É você quem está dizendo... 
— De alguma maneira, cara, eu não quero nem pensar que você acredita mesmo em tudo isso que você está dizendo... 

Não houve resposta. Os dois ficaram sem rumo. João estava pronto para sair, mas que festa haveria? Haruo tirou a camisa molhada, mas não soube onde colocá-la. 

— Estou me sentindo humilhado... — João soltou, em um desabafo apertado. Não gostou de tê-lo dito, mas foi invadido por uma sensação que estava sobre o pouco, sobre o muito pouco. Deixou o silêncio se esticar sobre sua fraqueza.

— João? — o semblante de Haruo era outro, um que já não aparecia há anos. 
— Eu não me importo com seu dinheiro, Haruo, e você sabe disso. Quando eu me apaixonei por você, não foi por isso, definitivamente. E você bem sabe que eu não dependo de você, que eu sou tão inteligente quanto você, mais até, e que eu poderia estar em outro lugar agora. Mas eu aceitei estar aqui, com você, ser sustentado por você, porque estar perto de você era mais importante para mim do que tantas outras coisas. E, tirando ocasiões como a de hoje, quando você me diz esse monte de crueldades, eu não me arrependo de ter largado tudo. Eu amo você, Haruo. Mas eu não dependo de você. Meu trabalho não é um hobby e rende muito mais dinheiro do que você faz parecer, e você também sabe bem disso. E eu odeio quando você fala do meu corpo como se o desprezasse, como se meu esforço para mantê-lo forte e desejável fosse uma estupidez sem tamanho. Esse é o mesmo corpo que eu levo pra cama, é o meu corpo, o corpo que eu te entrego. E eu juro, Haruo, se mais uma vez você virar pra mim e disser “minha casa”, como se essa casa fosse apenas sua, eu vou embora e nunca mais eu volto. Eu não estou aqui para estar sozinho, eu estou aqui pra vivermos juntos. Eu não sou seu colega de quarto, eu sou seu marido. Não me transforme em uma mágoa. 

João estava sentido. Caminhou na direção de Haruo; não em direção a ele, mas à chave do carro que estava no chão, a seus pés. Não voltou, depois disso, em nenhum momento, os olhos para Haruo. Ao abrir a porta, foi interrompido. 

— Aonde você vai? 
— Não é a nenhuma festa, pode ter certeza. 
— Você vai voltar? 
— Não essa noite. 

Haruo amava João e queria viver o resto de sua vida ao lado dele. João amava Haruo, mas precisava magoá-lo, feri-lo. Precisava dar o troco. Saiu de casa e foi a uma festa, não à de aniversário, mas a uma outra, cheia de homens disponíveis. Logo encontrou um que o quisesse, seu corpo, seu desamparo, e beijou-o. O beijo foi suficiente para que se arrependesse, para voltar para casa. Na cozinha, o arrependimento de Haruo lia atrasado o outro beijo de João, aquele deixado com os sanduíches. Pegou o telefone para ligar para o parceiro, mas ouviu o portão da garagem se abrindo, um pouco de alegria veio no encalço. João e Haruo se entenderam naquela noite. Pela manhã, com mais clareza, reiteraram desculpas e conversaram sobre antigos ressentimentos. Houve também tempo para relembrarem o namoro, o encantamento, a sedução, a decisão, o amor. Foram ao hospital, João restabeleceu a bateria do carro de Haruo e esperou que ele desmarcasse os compromissos daquela sexta-feira. Voltaram para casa em carros separados, mas queriam estar no mesmo, pois era hora de ficarem juntos. 

Oito meses depois, em uma festa na casa de seus pais, Haruo descobriu sobre aquele deslocado beijo de João. A noite maldita foi evocada com o vigor de uma novidade. A briga começou — recomeçou — no meio da festa, mas, por insistência de João, continuou no escritório, a portas fechadas. Os dois choraram os seus erros, outras acusações foram levantadas, mas ninguém mais precisava se defender, já se conheciam muito bem. João pediu perdão e disse que amava Haruo. Disse “eu amo você”. Haruo disse “eu também te amo, João, amo muito” e pediu perdão. Queriam limpar-se das más intenções com palavras diretas; era o principal: amavam-se. 

E mais uma vez — essa não seria a última — tomaram a decisão de permanecer. Não iriam embora, não se importariam nem com as verdades nem com as mentiras. Mais uma vez, mais essa outra vez, olhariam um para outro, para si mesmos, e repetiriam a escolha: custosa opção. Já haviam perdido muito nessa brincadeira, porém era assim mesmo que gostariam de prosseguir. Os votos eram de vontade e de amor.





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