FAVOR

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FAVOR


Conciliar uma relação em que cada um dorme de um jeito pode ser um desafio até mesmo para os mais compreensivos. Na casa de Tico e Afonso era imprescindível ser portador da habilidade de acordar os horários. Afonso dormia e acordava cedo, sempre. Tico não conhecia o relógio: dormir, comer, trabalhar, pagar contas, farrear; os compromissos podiam até se esconder na agenda, mas não faziam pressão sobre ele.

Ainda assim, os dois se acertavam bem. Havia sem dúvida um saldo de reclamações, mas que, negociadas, transformavam-se em bons pactos.

Para Afonso: não marcar nada com outras pessoas envolvendo a pontualidade de Tico, muito menos relacionar os problemas do parceiro — de qualquer natureza — à sua vida desregrada. Para Tico: nada de correr na esteira, ou de ouvir ópera, ou de gritar com a televisão quando Afonso estivesse dormindo. Nem lavar a louça.

Tico adorava lavar louça, era sua terapia. Mas logo concordou com Afonso que não o faria no meio da madrugada, em suas crises de insônia.

Desta vez, como em algumas outras, os pratos sendo ajeitados no escorredor e os talheres jogados no fundo da pia acordaram Afonso. No entanto, era ele mesmo quem estava desajustado no tempo por conta da noite mal dormida. Estava preocupado com a defesa da dissertação de mestrado de Tico, marcada para aquele mesmo dia. A ansiedade de Tico o contaminara, especialmente nos últimos dias, com o aperto do prazo. Tico andava louco pela casa, corria de costas na esteira, lia horas sem comer, ouvia as malditas óperas, chorava escondido, gritava com tudo e com todos, inclusive com Afonso, que ia tentando contornar a situação.

Antes de sair da cama, Afonso fez a prece de agradecimento e de súplica: tudo pela dissertação. Ao descer, parou no meio da escada para ver o parceiro, de banho tomado e cuecas, lavando lentamente a pouca louça que haviam sujado no dia anterior.

Tico respondeu-lhe fracamente o bom dia, mas foi surpreendido quando Afonso se encaixou todo nele, enroscando os braços, o pescoço, pressionando seu pau duro nas costas de Tico. A diferença de altura entre eles deixava Tico encolhido no abraço largo de Afonso, que logo sentiu que ele não sabia como reagir, indecisão bem comum do estado medo-ansiedade-cansaço. Disse-lhe, por isso, palavras antídotos, ainda que disfarçadamente. Sussurrava-lhe ao ouvido, lábios roçando a orelha quente, palavras como: “seu corpo me faz tremer” e “chega mais perto”, para encorajá-lo; “deixa eu sentir sua carne” e “adoro quando você é meu”, para acalmar-lhe. E, em gemidos, acrescentava: “me deixa entrar”, na tentativa de lhe emprestar o ânimo.

E enquanto sarava o parceiro com seu discurso, fechou a torneira, beijou-lhe a nuca, tirou-lhe a cueca, despiu-se também, abriu espaço, aproveitou da mão ensaboada de Tico a umidade escorregadia que o faria entrar. Sentou-se sobre a mesa e puxou para si o seu querido. Queria dar-lhe um pouco de prazer... e de força. Afonso penetrou-o delicadamente, até que Tico acomodou-se sobre ele, sobre a mesa. Em seguida, Afonso masturbava-o, tudo muito cuidadosamente, porque cada movimento era para ser sentido. Tico entendeu, mesmo que as palavras tivessem cessado, e desocupou a cabeça. Largou-se para que Afonso lhe desse o êxtase de que precisava.

Naquela manhã Tico experimentara um prazer que o sexo ainda não lhe havia oferecido em outras ocasiões, de gozar com o corpo inteiro, das entranhas às unhas, do couro cabeludo até onde acabava o corpo gigante de Afonso. Depois de explodido em deleite, querendo de volta o ar que lhe tinha sumido por tanto tempo, sentiu-se a voar. Afonso o tomara nos braços e o deitara no sofá da sala.

Dormiu escuramente para despertar tranquilo, confiante, refeito. Afonso ainda lhe fizera a gentileza de não lavar a louça, e, na pia, Tico deixou tudo limpo enquanto alinhavava mentalmente os pontos mais importantes da apresentação de seu trabalho.

Afonso arrumou a cama, comprou o almoço, atendeu as ligações, aguou as plantas, devolveu os filmes na locadora. Dirigiu o carro até a universidade e beijou Tico várias vezes ao longo do dia.

A dissertação de Tico era sobre saúde pública e sobre o uso de medicamentos na recuperação de dependentes químicos, ou sobre o não uso, ou sobre a reabilitação e os procedimentos médicos, enfim: títulos e subtítulos concernentes à psiquiatria, não vêm ao caso.

Tico foi aprovado, com louvor. Afonso também, por assim dizer.





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