VIZINHO

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VIZINHO


Nunca.
Caio nunca havia realizado nenhuma de suas fantasias sexuais. Apesar de oferecer a si mesmo uma larga gama de opções nesse sentido, jamais as circunstâncias lhe concederam o prazer de vivenciar algo que sua imaginação tivesse acalentado. 

Não se pode confundir essa frustração com a falta de criatividade de Caio que, além de ser um hábil sedutor, era também um mestre para criar situações e lugares divertidos para uma transa. Mas é diferente criar um mundo novo e criar um mundo que já estava planejado. Pelo menos era o que Caio achava, pois nunca desfrutara dessa segunda alternativa.

Havia as impossíveis: transar com Alexandre, o Grande; transar com o Tiger, dos Thundercats; transar consigo mesmo, no passado, em sua adolescência; transar em dois lugares diferentes ao mesmo tempo e gozar sincronizadamente.

Havia as realizáveis: transar em um viaduto, nu sobre o asfalto; transar com todos os membros de uma família; transar com o piloto de um avião em pleno voo, na cabine de comando; transar com um moribundo.

Havia ainda as facilmente realizáveis, mas nem dessas Caio conseguia se satisfazer: transar com um anão; transar em um monumento histórico; transar com o entregador de pizza; e a mais óbvia e acessível: transar com seu vizinho.

Havia também essa outra fantasia, a de transar com um jogador de futebol argentino. Caio era goleiro profissional, brasileiro, e nutria uma rivalidade natural por seus hermanos portenhos. Os brasileiros, especialmente os que gostam muito de futebol (que são muitos), aprendem a desejar a vitória em qualquer competição. Porém, aprendem ainda com mais gana que vencer um argentino, que derrotar um argentino, é ainda mais saboroso e meritório. Não tem nada a ver com patriotismo, é mais uma questão de vizinhança, como acontece com franceses e ingleses, japoneses e chineses, americanos e canadenses. As fronteiras separam e dizem muitos significados a quem está do outro lado.

Caio já enfrentara inúmeras vezes times argentinos. Primeiramente nos clubes, na disputa pela taça Libertadores da América, na qual era quase inevitável escapar de um confronto com uma equipe argentina. Depois, na seleção brasileira, jogos em que a rivalidade ganhava outras proporções. A advertência dos técnicos e dos colegas de equipe variavam em torno do mesmo teor: os argentinos são catimbentos, os argentinos são raçudos, os argentinos são habilidosos. De uma certa maneira, havia uma hostilidade advinda da admiração. Todo brasileiro gosta de assistir o futebol dos jogadores argentinos.

Os homens argentinos, conforme a observação de Caio, eram maravilhosos. Um povo bonito de aparência e de atitude. Nessas oportunidades de enfrentar os argentinos, deixava vir à tona seu tesão, mesmo com a tensão do jogo. A sua fantasia ia um pouco mais longe, a um lugar mais peculiar: sonhava em transar com um argentino depois de tê-lo derrotado na final da Copa do Mundo. Estaria o outro arrasado, destruído, e ele o foderia de um jeitinho bem brasileiro. Entre os tantos jogadores da esquadra portenha que lhe cabiam nessa fantasia, havia um predileto: o zagueiro Alejandro Neiman. Os dois dificilmente se encontravam em campo, pois ficavam em extremos opostos, e, salvo em algumas ocasiões extremas, dividiam o espaço em uma cobrança de escanteio.

Em 2007, Caio defendia o Atlético de Madrid, clube espanhol, e recebeu com alguma excitação a notícia de que Alejandro fora contratado pelo mesmo time. Era o meio da temporada e o argentino fora chamado em razão do afastamento por contusão de dois outros zagueiros. Uma semana depois de chegar à capital espanhola para os treinamentos, Alejandro embarcou em sua primeira viagem com os companheiros de equipe, rumo a Valencia, litoral leste do país. 

A comissão técnica decidiu que fariam a viagem de ônibus, no domingo pela manhã, jogariam a partida pela tarde, pernoitariam no hotel, e dariam um dia de folga aos jogadores, com direito a praia e farra.

O jogo, que não valia senão alguns pontos para times que não tinham mais chances de vencer o campeonato, foi um fiasco. Todos os jogadores, de ambas as equipes, saíram frustrados do gramado. O empate em 1 a 1 viera depois de noventa minutos de jogo ruim. Mas para um deles o sentimento era pior. Alejandro Neiman, estreante, marcara um gol contra, de cabeça. Ninguém reclamou muito, mas as repreensões estavam no olhar dos colegas, especialmente no de Caio, o goleiro.

Ao chegarem no hotel, Caio teve algum trabalho com a comissão técnica para que colocassem o novato em seu quarto, mas conseguiu que ficassem juntos. Logo que chegaram ao aposento que dividiriam, antes mesmo de acomodarem seus pertences, Alejandro pediu desculpas a Caio pelo gol contra. Caio disse que não havia problema, era coisa do futebol.

Alejandro deitou-se na cama e colocou os fones no ouvido, mas Caio não deixaria que ele ouvisse sua própria música. Em gestos muito lentos e cuidadosos, desligou o iPod do colega sobre a cama e recolheu os fones. O outro não entendeu o que se passava, mas então entendeu. Caio descalçou os tênis de Alejandro, tirou suas meias. Desafivelou o cinto e puxou a calça jeans pelas pernas. Ao despir o outro de suas cuecas, sorriu para ele, que já estava completamente duro. Alejandro levantou o tronco para que Caio tirasse sua camisa e, quando este o fez, sentiu o cheiro do sabonete que todos usavam no vestiário, no banho após o jogo.

Diante de Caio estava o argentino derrotado. Não pelo Brasil, como em sua fantasia, mas por seu erro, tão comum. 

Alejandro era branco, a pele grossa. Seus pés estavam feridos, como deveriam mesmo estar. Tinha poucos pelos nas pernas, mas muitos hematomas, novos (os roxos) e velhos (os amarelados e esverdeados). Suas coxas eram fortes, muito fortes, e ele as contraía levemente enquanto respirava. Seu pau se movimentava em um ritmo cadenciado; Alejandro estava imóvel, mas o sangue pulsava junto com o coração agitado. As mãos se moviam, tentando secar o suor em si mesmas. Seus antebraços eram pelados, assim como seu peito. A beleza de seu rosto era grossa, judia. Os cabelos escuros, ondulados, embaraçados, desciam até os ombros.

Caio pediu que Alejandro lhe fizesse o mesmo, tirando-lhe a roupa. Foi atendido, e viu que o outro reproduzia sua postura calma e delicada. Caio estava de pé, e olhava nos olhos de Alejandro, para que visse a surpresa dele ao ver o tamanho de seu pau. A reação era sempre a mesma, de todos os homens, ao encararem um desafio tão grande. Alejandro entendeu sua missão quando a mão do goleiro brasileiro pousou-lhe sobre a cabeça. Sem que pudesse dizer, sua boca foi invadida por Caio, que gemeu o prazer da saliva quente de Alejandro. O gemido disse a Alejandro que era ele quem estava no comando, que poderia assumir o deleite dali em diante. Tentou engolir Caio, mas ele era muito grande, de tirar o ar, e Alejandro por vezes se engasgava; boca cheia. 

Os sons, da voz, os gemidos, do imaginário, enchiam Alejandro; poderia ter ficado horas brincando com o corpo do outro, mas recebeu outro chamado. Caio voltou-o para a cama, posicionando Alejandro como bem queria. O argentino lhe advertiu que nunca havia transado daquela maneira; perguntou se iria doer. Caio respondeu-lhe que sim, que iria lhe doer muito. 

Poderia ter sido gentil, mas entrou de uma só vez, já travando Alejandro pela cintura, pois sabia que ele tentaria escapar. Disse a ele que aguentasse, que sentisse a grossura a lhe rasgar, o ardor, a força. Alejandro resistiu, instruído a se concentrar no momento, mas não sem gritar sua dor... que logo foi ficando confortável, embora Caio metesse com mais ferocidade. Alejandro jogou a cabeça para frente, em um claro movimento para suportar a consentida tortura, lançando os cabelos pelo o ar.

Nesse movimento, Caio pôde notar uma pequena bandeira da Argentina tatuada na nuca de Alejandro. Teve vontade de mordê-la e, como o outro era seu, o fez. Descontrolado, perdeu a noção da força de seu ataque, ao que Alejandro gritou, dessa vez da dor sem prazer. Caio sentiu o gosto de sangue em sua boca. Viu a ferida que fizera sobre o azul, sobre o amarelo, sobre o sol. Então diminuiu seu ritmo, entra, sai, entra, sai, entra, sai, com carinho. Aos poucos, foi parando de se mexer, e Alejandro lhe substituiu no balanço, para frente, para trás, para frente, para trás. Os dois estavam correndo para a mesma meta e não deveriam proteger o gol.

Gozar dentro de um argentino é, sem discussões que possam abalar tal convicção, um prazer inigualável. Gozar com um brasileiro dentro de você não chega a ser tão bom quanto, mas são delícias compatíveis.

Caio descansou, Alejandro descansou. Dormiram logo em seguida, imediatamente em seguida, na mesma cama. Acordaram no dia seguinte e se juntaram aos outros jogadores para o café da manhã. Durante o dia de folga, deixaram de lado o espírito coletivo e se desgarraram do bando de homens que ia em direção à praia. Decidiram passear juntos pelas ruas de Valencia, e conversaram, conversaram, conversaram, conversaram. 

Em suas fantasias, Caio não conversava tanto com seus amantes, mas aquilo não era uma fantasia. Nas voltas que fizeram pela cidade, Caio intuiu que Alejandro transaria com ele ainda muitas vezes. E que conversariam muitas outras vezes, pois haviam se dado bem.

Nessas transas e conversas que aconteceram segundo sua previsão, enquanto ouvia o sotaque portenho de seu colega, Caio pensava na Argentina, nos times, sempre nos times: no Boca Juniores, nos Estudiantes de la Plata, no Independiente, no Vélez Sársfield, no River Plate, no Racing. Era remetido a Maradona, a Caniggia, a Verón e a Messi, ao futebol. Por sua ignorância, não pensava em Guido ou em Perón, nem em Evita ou em Fangio, nem nunca ouvira falar nas Malvinas, nos Pampas ou na Patagonia.

Os brasileiros não conhecem a Argentina. Os argentinos são um mistério, são os vizinhos que nunca serão decifrados. Não se pode saber o suficiente sobre uma nação tão grandiosa, ainda que ela esteja tão perto.

Caio, equivocadamente, pensou ter atravessado sua própria fantasia, embora não a tivesse realizado. Julgou, também erroneamente, que havia desbravado um atalho no corpo e na fala de Alejandro; um caminho para a Argentina. Mas a verdade era que não tinha nem sequer percorrido aquele homem, porque um homem – sobretudo se nascido no berço de Che, vivido no imaginário de Borges e sonhado ao som de Piazzolla – não se deixa ser encontrado.

Nas fantasias, na vida, não há vizinhos: o homem está sempre longe.





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