FEDERER

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FEDERER


O escritor argentino Jorge Luis Borges conta-nos em seu conto El muerto, inscrito em seu livro El Aleph, a história de um homem, Benjamim Otálora, que avança com seus planos de deslealdade e usurpação sobre um sujeito bem mais poderoso do que si, Azevedo Bandeira. Suas investidas são bem sucedidas, e vão bem suas estratégias, até que outro finalmente o mata. 

“Otálora comprende, antes de morir, que desde el principio lo han traicionado, que ha sido condenado a muerte, que le han permitido el amor, el mando y el triunfo, porque ya lo daban por muerto, porque para Bandeira ya estaba muerto.” 

Retomo esta história, que para bom efeito na sobrevivência merece ser lida por fracos e fortes, a fim de apresentar o meu personagem, que é real. 

Roger Federer foi o melhor tenista que já se viu em quadra. As estatísticas que traduzem sua superioridade ainda hoje são anunciadas, pois sua maestria persiste. Mas os números — vitórias, troféus, dólares — não sinalizam com clareza a genialidade do suíço que revolucionou o tênis e seus padrões. Esta tarefa, da louvação do melhor, Borges o fez sem competidores à altura em El muerto. Federer, a exemplo de Bandeira, sempre soube ser mais poderoso e, para ele, os outros tenistas já começavam mortos. Incontáveis foram os jogos em que o público assistia um plot armado em quadra: Federer parecia a caminho da derrota, embora se mantivesse calmo, observador, triunfante. Depois disso vinha a vitória; mas antes de ela vir, já lhe havia vindo a certeza de que venceria, pois não havia pernas nem raquetes que o superassem. 

Para os estudiosos e amantes do tênis, Federer era a aula e o show no mesmo espaço, de tal maneira que não havia fundamento em que se destacasse, pois o jogo, e o serviço, o voleio, o smash, o lob, a posição dos joelhos, o forehand, o backhand, a devolução, o slice, o tempo, os winners, o conjunto de si mesmo: tudo ele executava com uma beleza inventiva e eficaz, que lhe garantia pontos e suspiros. 

Quando conheci Roger Federer, estávamos hospedados no mesmo hotel em Londres. Eu era mais um entre os seus milhares de reais admiradores; reverenciava-o como a um deus. Para se ter uma ideia da adoração fanática, irritava-me ideia de compara-lo a Pelé ou a Da Vinci, pois era como um borrão em sua imagem fluida e completa. 

O nosso encontro foi no foyer do auditório do hotel. O local estava vazio, era noite e ele perambulava por ali, como eu, insone. O ridículo da situação ficou por minha conta que, ao encará-lo, fiquei imóvel, calado, olhando fixamente para o ídolo que se materializara ao seu fiel adorador. Se o momento tivesse sido breve, não haveria embaraço. Contudo, eu só pude me mover minutos depois, quando o próprio Federer mostrou-se preocupado com minha reação. 

A conversa que eu nunca havia acalentado, por razões óbvias, apresentou-me o Roger Federer mais bonito que eu já tinha visto. Eu reparava no piscar de seus olhos, no seu cheiro, na textura de sua pele. Não foi poupado nenhum esforço de minha parte na tentativa de lhe dizer sobre a mágica daquele encontro, de minha devoção, de minha inteligência ao perceber sua genialidade, sua contribuição para a humanidade. E que acerto é um elogio, um louvor explícito, para quem sabe recebê-lo! Magnífica noite até ali! 

Os perdões que peço a mim, a ele — e a todos — não serão suficientes ainda que se acabem as culpas e os remorsos, já que o que me machuca é a marca da minha própria tolice, que não será esquecida. 

Antes da meia-noite, Federer convidou-me para fazer sexo, sem meias palavras, e eu o segui. E transamos em posições que não acredito que possam ser repetidas, e foram muitas vezes, o gênio era insaciável e incansável em mostrar que quem é brilhante para uma coisa há de o ser ainda mais para outras parecidas com aquela. Na sacanagem a que nos propusemos, não faltaram a mim as carícias em seu corpo, cotovelos, joelhos, barriga e o braço direito, o bendito braço mágico. 

Antes da manhã, mandou-me de volta ao meu quarto. Antes de eu terminar o banho, convocou-me para o café. Antes que eu cresse na beleza do resto da minha vida, Roger Federer perguntou-me se eu jogava tênis. Eu disse que sim. Então me convidou, como havia feito para o sexo, para o treino. 

Brincou comigo, mais uma vez, e sorria muito, errava muito, não estava jogando tênis, estava se divertindo com a minha pessoa. Foi quando o miserável desafio foi proposto. Federer provocou-me a receber um saque seu. Ele serviria dez vezes; seu eu fosse capaz de devolver apenas um, teria ingressos para todos os seus jogos até o final de sua carreira. Eu tinha consciência da improbabilidade de meu sucesso, mas o benefício era de enlouquecer o mais tímido dos fãs e, ainda pensei, o que havia a perder? 

Para quem nos assistia, o treino parecia uma brincadeira sem propósito, pois o tenista número um do mundo errou dez saques em sequência. Para fora, na rede, e de novo, na fita, fora da área de serviço. Em poucos minutos, Federer estava transtornado, e um semblante conhecido surgiu em seu rosto. 

Antes do meio-dia ele saiu da quadra, sem se despedir. Eu nunca mais o veria pessoalmente. Nenhum saque foi devolvido por mim, embora Federer tenha atendido ao espírito do desafio e passado a enviar-me, semanalmente, os tíquetes para assistir a seus jogos. Talvez tenha sido uma forma de vingança. 

Eu sei. O resto não sabe, pois o que aconteceu foi como um ace: rápido, forte, definitivo. O tênis que Federer se exultava em jogar havia morrido na minha presença, ou na cama, ou na quadra, não importa. Envergonho-me e machuco-me por ter sido o insensível que tirou seu horizonte, tirou seu chão e tirou seu tênis (e tudo o que se pode tirar quando se tira isso). 

Após nosso encontro, a carreira de Roger Federer torceu-se em uma trajetória de decadência lenta, desonrosa. Chegou a perder vários torneios na segunda rodada, que era ainda pior do que ser eliminado na primeira. Mesmo pela televisão — eu nunca cheguei a fazer uso de nenhuma das cortesias advindas do desafio — eu podia ver seu olhar esvaziado do brio, do orgulho. 

O que me aventuro a contar a partir deste momento só é possível porque embora eu carregue o peso de tê-lo feito perder tanto, sua grandeza é tamanha que suas conquistas nunca foram superadas, diminuindo a gravidade da destruição da qual fui mentor. 

Antes, anos antes de conhecer, comer e foder Roger Federer, eu havia sonhado com ele. Estávamos em uma quadra de grama, como em Wimbledon, e eu jogava contra ele. Meu sonho durou cada ponto de um jogo de tênis, no qual eu arrasava meu adversário com jogadas trazidas da vida real. Eu corria elegantemente pela quadra, passadas largas, e rebatia com firmeza, dava a velocidade certa às bolas que eu fazia ir e vir. Do outro lado da rede, Federer desesperava-se com o habilidoso algoz que diminuía seu jogo. A torcida vibrava para mim. Nós, eu e Federer, ouvíamos os vivas a me enaltecer, e os comentaristas também se faziam escutar, mas as atenções eram apenas para mim, o tenista de quem ninguém ouvira falar, mas que mudaria a história daquele esporte de maneira indelével. 

Venci o jogo, no sonho. Se parecer possível para uma partida de tênis, Federer não fez um ponto sequer.

Antes de acordar eu estava a um ponto da vitória e olhei para o homem do outro lado da quadra. Ele sustentava sem dignidade uma cara de choro e de raiva. Há quem visse uma, há quem visse outra. Mas nós dois (ele também se via) podíamos ver as duas. Misturadas ou alternadas. Saquei e venci. Roger Federer veio até a rede para cumprimentar-me, e pude vê-lo, bem de perto, vindo, chorando. 

Antes que eu chegasse até ele, vi seu corpo cair no chão, que agora era saibro, como em Roland Garros, e as lágrimas do campeão, do mestre, do perfeito, fizeram a lama que sujava o seu uniforme branco. Ele se encolheu, como um feto, e o pranto não deixava secar o barro que já dominava toda a paisagem. Então eu precisei acordar.





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