UMA DESSAS COISAS

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UMA DESSAS COISAS


Fazer amigos na velhice é uma dádiva, uma recompensa para os que conseguem permanecer vivos por tanto tempo e manter um coração aberto.

Edgar Torres era engenheiro, mas já não trabalhava tanto como no passado. A experiência e o renome, no entanto, ainda lhe requisitavam para palestras e consultorias. Há alguns anos fora convidado para ser o preletor na abertura do Congresso Nacional de Engenharia Elétrica, sua especialidade, na cidade de Belo Horizonte. Para acompanhá-lo na viagem, levou a esposa, Nancy, e sua cunhada, Nadir.

Para gerenciar sua estadia na capital mineira, foi designado um estudante de engenharia elétrica da UFMG, Natan Flores. O rapaz, cinquenta anos mais novo, era seu cicerone e secretário, responsável por organizar a venda de seus livros, fazer reservas nos restaurantes, avisar sua esposa sobre os itinerários, apresentar-lhe os outros congressistas de destaque e carregar sua pasta.

Foi Natan quem recebeu a ligação do hotel, pois era seu o contato que constava na ficha cadastral. As irmãs Nancy e Nadir haviam sido atropeladas por um ônibus, não resistindo ao acidente. Natan desligou o telefone atordoado, pensando em qual a melhor hora, lugar e mensageiro para tal notícia. Em alguns minutos decidiu que a hora era agora, que o lugar era onde estavam e que ele seria o portador do aviso de morte.

Interrompeu Edgar em uma conversa e, particularmente, contou-lhe o ocorrido. As consecutivas perguntas que Edgar lhe fazia a respeito do ocorrido iam sendo respondidas com prontidão, ainda que a resposta fosse “não sei”. O momento do choque, para ambos, ainda levaria alguns anos para passar.

Natan ouviu o pouco que Edgar tinha a dizer naquele momento, mas o suficiente para planejar os próximos dias. Conversou com os organizadores do congresso e com os amigos de Edgar presentes no evento. Ia à frente, resolvendo questões burocráticas no IML, na funerária e no hotel. Estava ao lado de Edgar quando este fez a ligação para o único filho. Natan encarregou-se do encaminhamento dos corpos, comprou as passagens aéreas e seguiu com Edgar até São Paulo. Procurou hospedagem nas proximidades da casa de Edgar e assistiu a família nos acertos do funeral e fazendo companhia ao viúvo. Ficou uma semana por lá.

Um mês depois, recebeu o convite de Edgar, que gostaria de recebê-lo em um feriado prolongado em sua casa. Natan desmarcou a viagem com os colegas e foi ao encontro de Edgar. Os quatro dias programados transformaram-se em dez, pois Natan refez sua agenda para esticar sua estadia. Nesse tempo, conversaram sobre física, sobre telecomunicações e sobre pesquisas em novas fontes de energia. Em outros momentos, falaram sobre a morte, e, em outros, sobre as perdas. Natan instalou novos programas no computador de Edgar e jantaram juntos em um restaurante de comida nordestina ao som de uma banda de forró, e essa foi uma noite divertida. Caminhavam pelas manhãs, ficavam em aprazível silêncio por longas horas; Edgar deu alguns livros de presente para Natan e deixou-o cozinhar no último dia.

Entre as bastantes trocas que fizeram, generosos com seu tempo e com seus sentimentos, Edgar e Natan passaram também pelas palavras de gratidão e de consolo, que não precisavam ser muitas, pois eram capazes de dizer mais que o desejado em poucas tentativas. A nova amizade nascia sólida, já que não havia outra configuração possível.

Trocavam e-mails diariamente, ligavam-se para comentar o futebol ou o jornal, compartilhavam seus trabalhos e leituras. Voavam constantemente entre São Paulo e Belo Horizonte.

As coisas que acontecem, os obstáculos, a solidão, a solidariedade; essas coisas são como flechas lançadas por um arqueiro inexistente; flechas que só encontram seu alvo depois de fincá-los. Alguns dizem que foi a morte que os aproximou, mas isso não seria justo nem com a morte nem com os amigos. Foi a vida.





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